“Todo-poderoso”, BC quer ditar o que pode e o que não pode na economia

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 30 de março de 2023

Adotando régua própria e um tanto controversa, para dizer o mínimo, o Banco Central (BC), por meio do seu Comitê de Política Monetária (Copom), arvorou-se no direito de determinar, isoladamente e sem votos para tal, os rumos da política econômica do governo instalado em janeiro passado. A autoridade monetária não apenas decidiu manter as taxas de juros em 13,75% ao ano como disparou recados para os ministérios da Fazenda e do Planejamento, endereçando suas advertências também para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), numa tentativa de impedir que o banco de fomento exerça seu papel de fornecedor de recursos a custos mais baixos para financiar o investimento no País.

A intenção evidente é amarrar a política macroeconômica aos “fundamentos” que o mercado considera mais “adequados” e, ainda, interferir na política de reindustrialização buscada pelo País, tentando impor ao BNDES um piso para os juros cobrados em suas operações de empréstimo e financiamento. Vale dizer, obrigando a instituição a abrir mão de quaisquer políticas destinadas a baratear o custo do dinheiro para projetos de investimento que serão estratégicos para a retomada da indústria, se e quando o governo e o BNDES conseguirem fazer deslanchar uma política industrial.

Já nas linhas finais de sua ata, divulgada na terça-feira, 28, a alta direção do BC, todos membros do Copom, incluiu o seguinte trecho: “Por fim, o comitê reforçou que a harmonia entre as políticas monetária e fiscal reduz distorções, diminui a incerteza, facilita o processo de desinflação e fomenta o pleno emprego ao longo do tempo. Nesse aspecto, o comitê reforça a importância de que a concessão de crédito, público e privado, se mantenha com taxas competitivas e sensíveis à taxa básica de juros”.

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Técnica ou ideologia?

Começando pelo final, a intenção do colegiado segue em linha com as políticas de desmonte do BNDES adotadas desde o governo Michel Temer, tolhendo a capacidade de financiamento do banco, mas ainda tentando estabelecer vínculos perniciosos entre o estabelecimento de linhas de crédito em condições mais favoráveis do que aquelas disponíveis no mercado e a própria política de juros escorchantes praticada pelo BC. Por trás da sentença, em si já ameaçadora, o Copom quer sugerir que, na medida em que o BNDES tente baratear o crédito em operações de prazo mais longo, o BC será “forçado” a manter ou mesmo elevar ainda mais os juros, para “compensar” os efeitos do crédito mais barato sobre a demanda total, o que tenderia a criar mais inflação. Há um erro duplo de diagnóstico aqui, como se tentará mostrar, num tipo de argumentação que embute uma carga muito mais ideológica do que técnica.

Balanço

  • O primeiro equívoco pressupõe que há um excesso de demanda por bens e mercadorias no País, o que parece ser desmentido por alguns fatos recentes. Redes de varejo, a começar pelo grupo Americanas, enfrentam dificuldades e ameaça de quebradeira em parte pelo encolhimento do consumidor (no caso das Americanas, há suspeitas fundadas de fraude cometida pelo trio dourado do capitalismo tupiniquim).
  • No setor automobilístico, a paralisação de fábricas neste momento responde também a uma redução da demanda, mas especialmente a problemas ainda enfrentados pelas cadeias globais de suprimento, o que tem dificultado o desembarque no País de peças, acessórios e sobretudo de componentes eletrônicos para a montagem de veículos. Neste caso, o crédito mais barato do BNDES surgiria até mesmo como solução, embora de médio prazo, para os gargalos na oferta, ao permitir o aumento da capacidade produtiva neste setor específico, como efeitos “desinflacionários”.
  • Em linhas gerais, olhando todo o conjunto da economia, investimentos eventualmente financiados pelo BNDES contribuiriam para estimular o aumento da capacidade de produção, a despeito de pressões iniciais sobre a demanda, ajudando, no longo prazo, a consolidar um cenário de maior oferta e de preços mais baixos. Mas o importante é estrangular o BNDES e impedir que o País volte a ter políticas industriais autônomas e independentes.
  • A ata reforça o que já havia sido publicado no comunicado distribuído na semana passada. A turma do BC acredita de fato que a política de juros extorsivos e o arrocho às despesas primárias (que não incluem gastos com juros) vão de fato trazer, lá na frente, inflação baixa, crescimento econômico e pleno emprego, como o pote de ouro ao final do arco-íris. Até lá, o País e seus trabalhadores terão que enfrentar recessão e desemprego, numa inversão total de valores. Afinal, a política econômica deveria ter como propósito central a geração bem-estar para a sociedade, com crescimento e mais empregos, preferencialmente de qualidade.
  • As expectativas para a inflação futura ocuparam maior espaço nos debates do Copom, segundo a ata divulgada dia 28, já que o comitê considerou “o comportamento das expectativas” como “um aspecto fundamental do processo inflacionário, uma vez que afeta a definição de preços e salários presentes e futuros”. Ainda nos termos da ata, “à medida em que se projeta inflação mais alta à frente, empresas e trabalhadores passam a incorporar tal inflação futura em seus reajustes de preços e salários”, retroalimentando a alta de preços no presente. “Ancorar” essas expectativas, portanto, foi considerado essencial no processo de controle da inflação.
  • O equívoco aqui parece estar justamente no “termômetro” escolhido, já que o BC afere as expectativas de inflação com base na pesquisa Focus. Realizada semanalmente, a pesquisa ouve exclusivamente o mercado financeiro, o que significa dizer que, em grande medida e em última instância, as decisões do BC autônomo e independente são determinadas pelo mercado que ele deveria regular. “As alterações nas projeções de inflação do Copom seguem sendo primordialmente afetadas pelas alterações nas expectativas”, ressalta o comitê.
  • Esse “viés financista”, por assim dizer, poderia ser compensado com a ampliação da pesquisa de forma a incluir outros setores da economia e da sociedade, agregando maior representatividade e isenção às tais “expectativas inflacionárias”.