Cicatrizes da pandemia exigem que Estado tenha papel mais ativo

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 17 de setembro de 2022

As cicatrizes deixadas pela pandemia, de acordo com a economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim de Conjuntura do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), vão exigir que o Estado mantenha o papel mais ativo assumido nas semanas subsequentes ao começo da crise sanitária, até para evitar que as distorções geradas pelo surto do novo coronavírus agravem ainda mais drasticamente as desigualdades na economia, aqui e no restante do globo. Seus efeitos, pondera a economista, afetaram desigualmente tanto as regiões quanto os trabalhadores, atingindo mais fortemente aqueles de menor qualificação.

“A economia que emerge da pandemia naturalmente é uma economia que demanda ainda uma atuação do Estado, no Brasil e em todo o mundo, já que seus impactos não são homogêneos, afetando mais duramente os mais vulneráveis”, comenta. Silvia antevê a necessidade de uma reorganização das políticas sociais, sob um novo arranjo que permita abrir espaço no orçamento público para aquelas políticas, sem gerar riscos de desequilíbrios fiscais.

Neste sentido, Silvia argumenta que o “lado B” da economia, com déficit primário, crescimento da relação entre dívida e PIB – aqui na previsão de Margarida Gutierrez, professora do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ) –, inflação persistente, embora mais baixa, e juros elevados por um período mais longo do que o esperado, será transferido para 2023, ajudando a agravar as condições de operação para a economia.Redatora do boletim de conjuntura do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Margarida chama a atenção para os efeitos dessa retomada sobre o mercado de trabalho, diante de uma redução substancial da taxa de desemprego e elevação dos empregos formais no primeiro semestre deste ano, na sua descrição.

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Informalidade

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam queda de 14,2% para 9,3% na taxa de desocupação entre o segundo trimestre de 2021 e igual período deste ano. No mesmo intervalo, o total de pessoas ocupadas avançou 9,9%, elevando-se de quase 89,4 milhões para praticamente 92,3 milhões, significando em torno de 8,9 milhões de ocupados a mais. Desse total, no entanto, pouco mais de 5,2 milhões de ocupações vieram da informalidade, já que o total de trabalhadores informais avançou de quase 34,1 milhões para 39,3 milhões, incluindo empregados sem carteira, conta própria e empregadores sem registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e ocupados que prestam serviços às famílias. Mais claramente, a informalidade respondeu por quase seis entre cada dez novas colocações geradas pela economia naqueles 12 meses.

Balanço

  • O pacote de bondades do governo federal, formulado sem maiores preocupações técnicas, com propósitos eleitoreiros mesmo, na visão de Silvia, animaram a atividade no segundo trimestre e alteraram os números esperados para o terceiro trimestre e tendem a evitar temporariamente um mergulho do PIB. Nos cálculos de Margarida, entre desonerações de impostos federais e estaduais, liberação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ampliação do Auxílio Brasil, subsídio ao gás de cozinha e outros benefícios, trata-se de um pacote próximo de R$ 200,0 bilhões “no mínimo”.
  • A injeção de gastos, prossegue ela, tem sido reforçada pelo “caixa enorme” acumulado pelos Estados desde o ano passado, autorizando um aumento importante nos investimentos estaduais e ainda aumentos de salários para o funcionalismo. Tudo somado, conforme a economista, os recursos vão “injetar demanda agregada na economia no terceiro trimestre”.
  • Os dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), em valores nominais, apontam um salto de 199,4% nos investimentos liquidados pelos Estados na comparação entre o primeiro semestre deste ano e igual período do ano passado, saindo de R$ 10,5 bilhões para R$ 31,4 bilhões. Pelo mesmo critério, a folha de pessoal e encargos registrou elevação de 15,3% na primeira metade do ano, somando R$ 248,9 bilhões frente a R$ 215,8 bilhões em 2021.
  • Na contramão dos estímulos fiscais, a política monetária e seus “efeitos defasados” sobre a atividade econômica tendem a reduzir o dinamismo do PIB neste segundo semestre e ainda no ano seguinte. “Hoje, para captar recursos no mercado de capitais, por meio de uma debênture, uma empresa vai ter que pagar o DI (taxa de depósito interbancário), que é a taxa Selic (os juros básicos na economia), mais um spread (margem acrescida pelos bancos na concessão de empréstimos), que reflete o tamanho da incerteza na economia. Os juros futuros no caso do DI de três anos estão atualmente em quase 14% ao ano”, argumenta Margarida, o que tende a desestimular a produção e o investimento.
  • Os juros mais altos, acrescenta Silvia, tem contribuído para esfriar a demanda por bens que dependem de crédito e ainda podem complicar o cenário para as famílias, complementa Gabriel Couto, economista do Santander. Olhando mais à frente, ele visualiza um cenário mais complicado em função dos dados sobre endividamento das famílias, “nas máximas históricas”, assim como um “arrefecimento do emprego”, o que deverá se traduzir em freio ao consumo nos próximos trimestres.
  • Segundo a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 79,0% das famílias estavam endividadas em agosto deste ano, percentual mais elevado desde que o levantamento começou a ser feito, em janeiro de 2010, considerando as dívidas com cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, crédito consignado, empréstimo pessoal e as prestações do carro e da casa própria. O percentual de famílias com dívidas em atraso superou 29,6%, diante de 25,6% em agosto de 2021.