Gasto com dívidas cresce 6,5 vezes mais do que a renda das famílias

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 04 de novembro de 2022

O “serviço da dívida” das famílias, envolvendo o pagamento de juros e amortizações do saldo devedor, registrou forte aceleração nos últimos meses, passando a crescer em velocidade mais acentuada do que a renda disponível bruta das famílias, de acordo com dados do Banco Central (BC). O avanço tem acompanhado não só a alta dos juros, mas também a curva de crescente endividamento das famílias, tornando o cenário econômico à frente mais nebuloso, especialmente para as famílias de renda mais baixa, como mostra trabalho recentemente desenvolvido pela equipe de pesquisadores responsável pelo Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) e explorado pelo economista Luiz Schymura, do próprio Ibre, em artigo no jornal Valor Econômico (1º.11.2022).

O comprometimento da renda das famílias com o pagamento de juros e amortizações atingiu em agosto deste ano níveis históricos, batendo em 29,40% diante de 25,53% no mesmo mês do ano passado. Nesta comparação, o BC leva em conta a renda bruta disponível das famílias numa média trimestral, já devidamente dessazonalizada e ajustada à inflação. Entre o trimestre finalizado em agosto do ano passado e o mesmo período trimestral deste ano, a renda experimentou variação real de 2,84%, saindo de R$ 515,044 bilhões para R$ 529,668 bilhões.

Cruzando esse dado com a informação do próprio BC em relação à parcela da renda destinada ao pagamento do serviço da dívida, pode-se estimar um gasto médio ao redor de R$ 155,72 bilhões em agosto deste ano, o que se compara com algo em torno de R$ 131,48 bilhões no mesmo mês do ano passado, resultando num incremento de 18,4% também em termos reais. Ou seja, a velocidade de crescimento do serviço da dívida foi praticamente 6,5 vezes maior do que o aumento registrado pela renda das famílias.

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Descasamento

A dívida ampliada contratada pelas famílias, incluindo empréstimos e financiamentos de bancos e outras instituições financeiras, empréstimos de fundos, a exemplo do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além de empréstimos tomados fora do País, experimentou crescimento nominal de 19,3% entre setembro do ano passado e o mesmo mês deste ano, saindo de R$ 2,777 trilhões para qualquer coisa próxima a R$ 3,314 trilhões. Nitidamente, a dívida ampliada tem crescido mais rapidamente do que a capacidade do conjunto da economia de gerar renda e riquezas, já que a relação do saldo devedor com o Produto Interno Bruto (PIB) avançou de 32,9% para 35,2%. Mantido esse descompasso, a tendência é de um agravamento dos números da inadimplência, trazendo o risco de afetar muito negativamente a capacidade e as decisões de consumo da família, agravando a crise caso nenhuma medida seja tomada pelo governo recém-eleito em busca de soluções para o que Schymura classifica como “superendividamento” das famílias.

Balanço

  • Num parêntese, o conceito de renda adotado pelo BC (Renda Nacional Disponível Bruta das Famílias ) teoricamente permite identificar todas as formas de renda das famílias, somando salários dos trabalhadores, dividendos e outras rendas recebidos por donos de empresas, rendimentos de aluguéis e juros e demais rendimentos de aplicações financeiras, aposentadorias, pensões e benefícios do sistema nacional de assistência social, como os benefícios de prestação continuada, renda mensal vitalícia e Bolsa Família (hoje Auxílio Brasil), além de transferências eventuais de renda, a exemplo do auxílio emergencial. Depois de somar todos aqueles valores, o BC desconta os valores pagos pelas famílias a título de imposto de renda e impostos sobre o patrimônio (como IPTU e ITR), as contribuições para a Previdência e transferências de renda feitas pelas famílias para outras instituições e para fora do Brasil. Fecha parêntese.
  • Os dados do BC mostram uma variação relativamente modesta dos índices de inadimplência dentro do sistema financeiro nacional, no caso das pessoas físicas, saindo de 2,9% em julho e agosto do ano passado para 3,6% em julho e para 3,7% em agosto e setembro deste ano. Modesto diante do aumento verificado no comprometimento da renda com o serviço da dívida.
  • De acordo com Schymura, pesquisadores do Ibre construíram uma “radiografia detalhada dessa onda de endividamento das famílias”, resultado ainda das dificuldades geradas pela pandemia e agravadas mais recentemente pela escalada dos juros. Essa radiografia considerou a base de dados do Sistema Central de Riscos (SCR) do BC, que consolida “informações remetidas mensalmente por todas as instituições financeiras”, entre bancos e as chamadas fintechs, incluindo operações acima de R$ 200 sobre “empréstimos, financiamentos, avais e fianças”.
  • Os números mostram que as famílias de renda mais baixa, com ganhos mensais de até dois salários mínimos, têm sido mais sacrificadas nesse processo, com o endividamento agravado ainda pelo fato de se concentrar em formas mais onerosas de crédito, a exemplo de empréstimos pessoais e cartão de crédito. Assim, entre janeiro de 2020, antes da pandemia, e julho deste ano, as dívidas com cartão e empréstimos pessoais naquela faixa de renda cresceram 68,5% e 131,0% atingindo respectivamente R$ 114,3 bilhões e R$ 46,9 bilhões. A inadimplência no cartão subiu de 7% para 13% entre maio de 2021 e julho deste ano, saindo de 6% para 10% nos empréstimos pessoais de outubro do ano passado para julho deste ano.
  • Na faixa de renda mais alta, com ganhos acima de cinco salários mínimos, as dívidas com cartão e com empréstimo pessoal aumentaram 56,0% e 62,0% também entre janeiro de 2020 e julho de 2022, chegando a R$ 187,9 bilhões e a R$ 120,6 bilhões na mesma ordem. Mas a inadimplência tem flutuado entre 2% e 3% ao longo deste ano.
  • Entre outras conclusões, os pesquisadores do Ibre, nas palavras de Schymura, os clientes de baixa renda passaram a responder por quase dois quintos da inadimplência em todo o sistema, muito embora representem “apenas cerca de um quinto do volume de crédito para pessoas físicas”.
  • Ainda segundo o pesquisador, “para esse segmento (de renda mais baixa), é bastante comum renegociar dívidas, mas agora isso está sendo feito num ambiente de juros muito mais altos, o que deve criar superendividamento persistente, com efeitos macroeconômicos adversos como a inibição do consumo”.