Juros explicam quase todo o avanço da dívida pública bruta desde 2017

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 27 de fevereiro de 2024

Como demonstrado neste espaço (O Hoje, 23/02/2024), a dívida do governo no Brasil cresceu muito menos do que o avanço experimentado pela dívida pública de outros países entre 2017 e 2023, considerando as estatísticas de organismos multilaterais e entidades privadas do setor financeiro mundial. O dado isoladamente deveria contribuir para desmontar ou pelo menos conter o ímpeto catastrofista dos “loucos por um ajuste fiscal a todo custo”. Mas há mais dados a serem considerados. E não, esses dados não estão escondidos em escaninhos misteriosos mantidos pelo Banco Central (BC) apenas para dificultar a vida dos cidadãos. Os números estão perfeitamente disponíveis no site da mesma autoridade monetária e sua consulta não demanda esforços sobre-humanos.

Considerando os cálculos do BC, que em geral não correspondem àqueles informados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) por uma questão metodológica, a dívida bruta do governo geral de fato cresceu, em valores nominais, perto de 66,4% entre 2017 e 2023, subindo de pouco menos do que R$ 4,855 trilhões para R$ 8,079 trilhões. O total de riquezas produzidas pelo País em igual período aumentou quase na mesma proporção, mas um pouco abaixo, numa variação de 65,0% também em termos nominais, sem descontar o efeito gerado pela alta dos preços em geral sobre os valores dos bens e serviços produzidos e consumidos em todo o País.

Na estimativa mais recente do BC, o Produto Interno Bruto (PIB) teria alcançado em torno de R$ 10,868 trilhões no ano passado, diante de pouco mais de R$ 6,585 trilhões em 2017, num acréscimo de R$ 4,282 trilhões. O avanço da dívida bruta, como mostram os dados oficiais, chegou a R$ 3,225 trilhões. Os números parecem guardar alguma proporção, mas há uma diferença nada desprezível de R$ 1,057 trilhão entre o incremento da dívida e do produto. Isso explica a elevação da relação entre dívida bruta e PIB de 73,72% para 74,34% naqueles seis anos – números bramidos pelo “esquadrão austericida” como um sinal inequívoco da falência do Estado.

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Causa maior

Um pouco mais de esforço na garimpagem de dados poderia lançar mais luzes sobre essa discussão, distorcida pela ferocidade ortodoxa dos neoliberais que dominam o debate econômico na grande mídia. Nos seis anos entre janeiro de 2018 e dezembro de 2023, a política eterna de juros altos gerou despesas do tamanho de 29,57% de tudo o que o Brasil produziu no ano passado, com um gasto acumulado ligeiramente superior a R$ 3,213 trilhões. Como visto logo acima, atenta leitora e atento leitor, a dívida registrou um aumento equivalente a R$ 3,225 trilhões no período analisado. Pode-se dizer, como mostram os dados, que os juros foram a principal causa do maior endividamento dos governos. Comparando os números, a conta dos juros respondeu nada mais, nada menos, por 99,65% do aumento registrado pelo passivo total do governo geral – que inclui a União, Previdência, BC, Estados, Distrito Federal e prefeituras.

Balanço

  • A metodologia defendida pelo FMI para aferir a dívida dos governos, no entanto, inclui títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e estacionados na carteira do BC, geralmente utilizados para regular a oferta de dinheiro no mercado financeiro. O estoque desses papéis cresceu 87,26% entre 2017 e 2023, saltando de R$ 594,473 bilhões para R$ 1,113 trilhão, num acréscimo de R$ 518,723 bilhões. Neste caso, a dívida bruta teria avançado 68,70%, subindo de R$ 5,449 trilhões para R$ 9,192 trilhões numa estimativa da coluna, em torno de 13,8% maior do que a dívida bruta medida pelo BC (o que não significa algum tipo de subestimativa ou caso de “manipulação”).
  • Mesmo nesse caso, o peso dos juros continuaria expressivo, correspondendo a 85,84% do aumento de R$ 3,743 trilhões experimentado pela dívida bruta, quando incluídos os títulos federais em poder do BC. Na mesma contabilidade, a relação entre dívida e PIB sairia de 82,74% para 84,58%.
  • Mesmo essa contabilidade, a despeito das críticas dos mais conservadores, parece não refletir integralmente o nível efetivo de endividamento do setor público, já que não considera créditos e ativos disponíveis nas contas do Tesouro e do BC. Nos demonstrativos dos governos estaduais e municipais, assim como nos balancetes de empresas privadas, o endividamento é considerado em termos líquidos, quer dizer, considerando disponibilidades de caixa e outros créditos líquidos e descontando esses valores do saldo da dívida total bruta.
  • Entre outros ativos, por exemplo, a contabilidade da dívida pública brasileira não leva em conta as reservas internacionais brasileiras e nem mesmo as disponibilidades do Tesouro depositadas na conta única do BC para fazer frente ao refinanciamento da dívida pública, quando necessário, e igualmente regular a liquidez no mercado (a oferta de dinheiro). São ativos que podem ser usados, por exemplo, em momentos de crise e ainda na hipótese pouco provável de o Tesouro não conseguir vender títulos no mercado para honrar os papéis que vão vencendo ao longo do tempo. Por que não poderiam ser “abatidos” do estoque da dívida bruta para estabelecer o cenário real do endividamento do setor público brasileiro?
  • As disponibilidades do Tesouro no BC cresceram 53,26% de 2017 a 2023, saindo de R$ 1,079 trilhão para quase R$ 1,655 trilhão, num acréscimo de R$ 575,065 bilhões. Medidas em reais, numa estimativo própria baseada em dados do BC, as reservas aumentaram praticamente 48,0% no mesmo intervalo, passando de R$ 1,198 trilhão para R$ 1,773 trilhão (ou seja, R$ 574,854 bilhões a mais).
  • A dívida do governo geral, descontadas apenas a conta única e as reservas, baixaria para R$ 5,764 trilhões, ou seja, em torno de R$ 3,428 trilhões a menos, numa queda de 37,29% na comparação com o saldo devedor calculado com base na metodologia definida pelo FMI. A relação dívida e PIB baixaria de 84,58% para 53,04% – ou seja, nada ameaçador.