Na contramão do mundo, governo amplia espaço para energia “suja”

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 22 de dezembro de 2021
Linhas de transmissão de energia, energia elétrica

Festejados pelo governo, os resultados do primeiro leilão de energia de reserva, destinada a reforçar a oferta e a confiabilidade do setor elétrico, desnudam um vício estrutural e um planejamento equivocado (ou, alternativamente, a falta de planejamento). Entre os 17 projetos vencedores no leilão realizado ontem, apenas um oferece energia “verde”, gerada a partir de fonte renovável (bagaço de cana), respondendo por 1,56% da potência total contratada. Nove deles vão utilizar gás natural de petróleo como fonte, cinco usarão óleo combustível e dois oferecerão energia produzida a partir de óleo diesel.

Na visão do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), o leilão “vai na contramão do que tem sido implementado em mercados de potência internacionais, que não discriminam o tipo de fonte e sua remuneração de atributos, visando a maior participação das renováveis e a garantia de flexibilidade ao sistema”. A pressa para assegurar o aumento rápido na geração de energia e na oferta de potência para atender especialmente os períodos de pico de consumo, como forma de driblar os riscos de uma crise de suprimento, produziu uma solução notoriamente desequilibrada, que vai tornar a matriz energética mais “suja”, com impactos ambientais, sociais e econômicos aparentemente desprezados pelos formuladores dessa política.

“Os esforços recentes do setor elétrico na intensificação da contratação de termelétricas fósseis acontecem a despeito de um crescimento marcante de novas fontes renováveis como eólica e solar”, registra ainda o Iema. De acordo com o instituto, “a contratação de mais usinas termelétricas impacta o meio ambiente, o clima e a economia nacional, ao contribuir para o progressivo encarecimento da conta de energia elétrica”.

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As estimativas disponíveis indicam que usinas a gás natural, consideradas “menos poluentes” apenas quando comparadas a térmicas a carvão, a diesel e a óleo combustível, demandam perto de mil litros de água para gerar um megawatt/hora (MWh), conforme o Iema. “Além disso, usinas termelétricas emitem gases de efeito estufa (GEE), bem como poluentes atmosféricos que têm efeitos negativos comprovados na saúde humana e no meio ambiente”, incluindo monóxido de carbono, óxidos de nitrogênio e de enxofre e material particulado – estes dois últimos estão relacionados principalmente a termelétricas a carvão, que participaram do leilão, mas não foram contratadas.

Exclusão premeditada

Por decisão do Ministério de Minas e Energia (MME), da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que promoveram o leilão, fontes renováveis variáveis, como eólica e solar fotovoltaica, em franco crescimento, “foram deixadas de lado”, reforça o Iema, ainda que pudessem “apresentar grande complementaridade entre si e com a geração hidrelétrica no Brasil, principalmente devido ao efeito portfólio”. Resumidamente, aquele efeito leva a uma redução da “variabilidade da energia gerada” como resultado da instalação de múltiplos projetos, permitindo a geração simultânea de energia, e ainda pela combinação de fontes diversas, o que diminui os riscos associados a esse tipo de geração. Os dados mais recentes da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) mostram que o setor de geração de energia eólica atingiu um “fator de capacidade médio” em torno de 40,6%, fator que chegou a alcançar 59,1% durante julho a novembro de 2020, período em que ocorre a chamada “safra dos ventos”.

Balanço

  • Isso significa dizer que as plantas eólicas em operação no País, num total de 751 parques eólicos (87,2% dos quais instalados no Nordeste), conseguem colocar à disposição do sistema integrado de energia praticamente 41% de toda sua capacidade durante todo o período em que estão em operação. O índice chega a superar o fator realizado pelas hidrelétricas e certamente está acima daquele registrado em Belo Monte (em torno de 40%).
  • Sua operação combinada com a geração hidrelétrica e associada ainda à geração solar e ao setor de biomassa, em suas mais diversas alternativas, ajudaria a dar sustentabilidade e confiabilidade ao sistema de geração com um todo, aliviando a pressão sobre os reservatórios das principais hidroelétricas, considerando-se o fato de as fontes renováveis estão disponíveis justamente nos períodos de baixa pluviometria.
  • Olhando para fora do País, o Iema mostra que países como México, Colômbia e Chile “criaram condições para altas taxas de penetração de fontes renováveis variáveis no sistema”. Estrategicamente, aqueles países asseguraram tratamento isonômico entre as diversas fontes de energia, fixando remuneração adequada conforme os “atributos” de cada fonte (o que significou reconhecer o que os especialistas classificam como “externalidades positivas” das energias renováveis, contemplando os efeitos positivos sobre o meio ambiente e sobre emissões de gases do efeito estufa, entre outros fatores).
  • Os mesmos países adotaram ainda uma “combinação entre fontes renováveis, mecanismos de controle da demanda e sistemas de armazenamento de energia”, algo ainda não contemplado nas políticas do governo para o setor elétrico. O foco não foi apenas agregar potência, mas igualmente prover maior flexibilidade ao sistema para atender à demanda adequadamente e enfrentar pressões. “Percebe-se, assim, que os mecanismos aplicados no Brasil não estão alinhados com as tendências internacionais”, sublinha o Iema.
  • Para “aprimorar a confiabilidade e a eficiência do sistema”, o instituto recomenda que os leilões adotem como premissas “a ampliação da “integração das fontes renováveis”, considerando não apenas “sua economicidade”, mas igualmente seus atributos, “com sinais de preço que permitam valorar adequadamente os serviços prestados”pelas tecnologias mais limpas.
  • O leilão realizado ontem contratou 5,126 gigawatts (GW) de potência instalada, com 4,633 GW de potência disponível e garantia firme de 463,8 MW médios, o que deverá exigir investimentos de R$ 5,980 bilhões. O início de operação das usinas contratadas está fixado para julho de 2026.