Corregedoria: 100% dos conselheiros tutelares assumem cargo sem qualificação

Em 69% dos locais onde funcionam os conselhos, não existe auxílio de uma equipe técnica específica para avaliar os casos (psicólogos e assistentes sociais

Postado em: 24-09-2017 às 17h00
Por: Lucas de Godoi
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Em 69% dos locais onde funcionam os conselhos, não existe auxílio de uma equipe técnica específica para avaliar os casos (psicólogos e assistentes sociais

Após mais de 18 anos decorridos desde a aprovação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no País com a composição de
Conselhos Tutelares para ajudar a proteger crianças e adolescentes que se
encontram em alguma situação de risco, um levantamento inédito e minucioso da
Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás (CGJGO) sobre a situação dos Conselhos
Tutelares do Estado mostra que 100% dos conselheiros eleitos pela comunidade
não recebem qualificação para o exercício da função. Apenas 38% deles tem
formação continuada e, embora exista um número elevado de ocorrências de
trabalho infantil, que atinge o percentual de 63%, o estudo aponta que 56% dos
profissionais que atuam nos Conselhos também não têm capacitação específica nas
questões relacionadas ao combate do trabalho infantil.

Outro dado alarmante diz respeito a precariedade das
estruturas física e humana dos conselhos, uma vez que, conforme demonstra a
pesquisa, 71% não têm sede própria, 65% não têm cômodo reservado para o
atendimento em razão de espaço físico inadequado e 61% não têm acessibilidade
para pessoas portadoras de deficiência. Mais de 40% dos Conselhos só dispõem de
um computador para a realização do trabalho cotidiano e apenas 37% contam com
um notebook. Equipamentos indispensáveis para a execução do serviço como
impressoras multifuncionais, além de bebedouro e refrigerador são cedidos pelo
SDH e 44% dos Conselhos não tem relatório estatístico.

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Em 87% dos casos, segundo revela o levantamento, o Conselho
Tutelar é acionado para acompanhar o transporte de adolescentes infratores, mas
56% os profissionais utilizam carro próprio no cumprimento desse dever. A
maioria expressiva, mais de 50%, não tem motorista e 83% não possui veículo
oficial. Somente 50 unidades têm grades, cinco são dotadas de câmera de
segurança e duas contam com cerca elétrica, apesar de um grande número de
Conselhos estarem equipados com arquivos (124).

O estudo também demonstra que embora exista previsão na lei
orçamentária municipal com disponibilização de recursos necessários ao
funcionamento do Conselho Tutelar, 85% da verba do FMDCA não é utilizada para a
remuneração dos conselheiros tutelares e 80% não são destinadas ao
funcionamento dos conselhos. Somente 2% desses profissionais têm um salário
superior a R$ 2,5 mil, sendo que 45% recebe somente um salário mínimo. O
relatório aponta outra realidade cruel, já que 63% dos conselheiros cumprem uma
carga horária de trabalho superior a 40 horas semanais, sem contar os plantões.

Por determinação do juiz, 91% das crianças e adolescentes
são encaminhadas pelo Conselho Tutelar a entidades de acolhimento e em 71% das
situações existem fiscalização por parte dos Conselhos às entidades de
cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado (delegacias de polícia e
Centros de internação) e 54% em meio aberto (prestação de serviços à comunidade
e liberdade assistida). Em 83% dos casos, os Conselhos Tutelares realizam o
acompanhamento durante o acolhimento e em 69% das situações providencia o
afastamento da criança/adolescente do trabalho infantil.

Registro manual e
ausência de equipe técnica

São registrados 99% dos casos que chegam ao Conselho
Tutelar, a maioria ainda manualmente e em livros (166 registros) e o restante
no computador (69) ou através do Sipia (5). O levantamento evidencia que 99%
dos conselhos tem a quantidade total de integrantes (5) e que em 67% o quadro
de suplentes também está completo. Com relação ao apoio de outros órgãos ou
entidades da Rede de Proteção, o Conselho Tutelar mantém uma articulação em 87%
dos casos com o Sistema de Saúde, CREAS e CRAS, Poder Judiciário e Centros de
Internação (semiliberdade).

Em 69% dos locais onde funcionam os conselhos, não existe
auxílio de uma equipe técnica específica para avaliar os casos (psicólogos e
assistentes sociais) e em 79% das situações são utilizados profissionais dos
CREAS e CRAS. Entre as principais dificuldades enfrentadas, além da ausência de
qualificação profissional, de acordo com o relatório da Corregedoria, estão a
falta de materiais básicos para o cumprimento das requisições e a ineficiência
de políticas públicas. Entre os maiores registros de ocorrência contra os
conselheiros tutelares estão em primeiro lugar a ameaça (33 registros) seguida
de agressão (27) e tentativa de homicídio (4).

Sensível à questão, o corregedor-geral da Justiça de Goiás,
desembargador Walter Carlos Lemes, disse que é preciso tomar providências
sérias e emergenciais com a adoção de medidas conjuntas e parcerias com os
outros Poderes e órgãos ligados a Infância e Juventude para dar condições
dignas de trabalho aos conselheiros, investir em capacitação e dotar os
conselhos de sede própria, resgatando, assim, a dignidade desses profissionais
e reconstruindo valores até então deixados de lado pelas próprias autoridades
responsáveis. “A situação dos Conselhos em Goiás é muito preocupante. Já temos
um norte traçado por esse importante diagnóstico da Corregedoria e a partir
dele é necessário com urgência tomar medidas conjuntas para sanar essas
dificuldades decorrentes de uma série de problemas de ordem estrutural,
financeira e humana. Não podemos ficar inertes diante dessa situação”,
acentuou.

Por essa razão, segundo explicou o corregedor-geral, a
Corregedoria teve a iniciativa de realizar esta semana uma reunião com membros
dos Ministérios Públicos de âmbito Estadual e do Trabalho, além de
representantes dos Poderes Executivo e da área da Infância e da Juventude, na
busca de soluções imediatas que auxiliem na resolução do problema enfrentado
pelos Conselhos Tutelares em Goiás. “Várias deliberações já foram tomadas nesse
encontro, entre elas a elaboração de uma pauta entre a Corregedoria-Geral da
Justiça de Goiás (CGJGO) e vários órgãos ligados a área da Infância e da
Juventude a fim de capacitar os conselheiros tutelares. É preciso união,
esforço concentrado e boa vontade para que cheguemos a uma alternativa viável
que possa garantir o melhor funcionamento desses conselhos e dignidade a todos
que atuam nesta seara tão importante e delicada”, ressaltou.

Ao deixar claro que é preciso colocar em ação iniciativas
efetivas na resolução dessa situação, a juíza Sirlei Martins afirmou que de não
adianta a confecção de um relatório tão bem feito se a sociedade não tiver uma
resposta eficaz, com soluções práticas. “Todos temos nossa parcela de
responsabilidade e temos que enfrentar de frente o problema agindo juntos e
mobilizando os outros poderes. Somente assim poderemos de fato modificar essa
realidade que afeta uma das áreas mais complexas e frágeis que é a Infância e
Juventude”, realçou.

Dedicação e afinco

O relatório, concluído nesta gestão, levou mais de um ano
para ser concretizado e a equipe da Corregedoria chegou a percorrer cinco
cidades em um dia. No total, foram visitados 247 municípios do Estado, todas
comarcas do Poder Judiciário e seus respectivos distritos judiciários. Em
algumas localidades, os conselheiros não têm celular para o plantão com
chamadas de urgência e usam o particular, conforme consta das observações complementares
inseridas no relatório apresentado pela CGJGO.

O diagnóstico feito pela CGJGO demonstra que os prédios onde
funcionam os Conselhos Tutelares geralmente são das prefeituras locais e os
móveis estão em péssimas condições, as salas de atendimento não têm
privacidade, o espaço é inadequado e sem privacidade e em muitos locais não há
ventilação, nem luz. Faltam também funcionários para prestar serviços básicos
de atendimento, de secretaria e zeladoria e até de limpeza.

Alguns exemplos da gravidade do problema estrutural que
atinge os Conselhos Tutelares nos municípios goianos estão expostos no
relatório. Um deles é Itaguaru, onde a sede do Conselho Tutelar funciona em uma
residência que é dividida com o Centro de Reabilitação Local, cujo imóvel é
alugado pelo município. Apenas dois cômodos são cedidos para o atendimento, que
não tem caráter sigiloso. Mesas, cadeiras, armários e bebedouros são elementos
fictícios.

Em Goianira, falta gás de cozinha, água potável e kits
básicos de higiene no prédio do Conselho Tutelar e a porta dos fundos é
trancada com o cabo de um rodo de madeira. Os utensílios são usados, e não há
computador, internet, impressora ou linha telefônica. “É nessa situação
vergonhosa que os conselheiros trabalham e recebem a comunidade e as crianças.
Em várias unidades já houve corte de energia elétrica e água por falta de
pagamento, não existe telefone fixo, nem sanitários para o público interno.
“Chegamos a presenciar situações em que crianças abusadas e sozinhas
tinham que passar por um longo corredor para chegar até a sala de atendimento
do Conselho Tutelar. Pelo constrangimento, muitas desistiam no meio do caminho.
Os conselheiros tutelares estão literalmente pedindo socorro”, alerta
emocionado o assessor correicional Paranahyba Santana, que esteve à frente
desse raio x.

Na opinião de Paranahyba Santana, esse é um dos trabalhos
mais intensos e de maior complexidade da sua trajetória profissional, que
completa 36 anos de atuação no Poder Judiciário. “Vimos um pouco de tudo ao
percorrer todos os Conselhos Tutelares do Estado, desde a falta de estrutura
mínima para o trabalho à ausência absoluta de qualificação profissional para
lidar com situações diversas envolvendo crianças e adolescentes. Precisamos de
humanidade, de abrir nossos ouvidos e nosso coração para essas pessoas, pois
juntos poderemos combater de frente todas essas discrepâncias, que tornam
indigno um dos trabalhos mais louváveis que existem que é a proteção às nossas
crianças e adolescentes em situação de risco”, comove-se.

O atraso de até três meses no salário dos conselheiros e o não
pagamento de benefícios sociais, previstos na Lei Federal nº 12.696/12, objeto
de ação judicial já proposta pelo Ministério Público, também estão entre as
informações complementares do relatório. O trabalho de campo por Paranahyba
Santana e a coordenadoria das atividades ficou a cargo da assessora de
Orientação e Correição da Corregedoria, Maria Beatriz Passos Vieira Borrás.

(TJGO, por Myrelle Motta – Foto: Weber Witt) 

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