Sente para escutar o sertanejo delas

As mulheres têm ganhado cada vez mais espaço na música sertaneja e caipira por meio da luta por protagonismo nas letras

Postado em: 12-11-2016 às 06h00
Por: Redação
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As mulheres têm ganhado cada vez mais espaço na música sertaneja e caipira por meio da luta por protagonismo nas letras

Elisama Ximenes

“Bora se juntar contra esses homem safado!”, “E não deixa baixo não!”, “Regaça, mulher!”. Poderia ser uma conversa de porta da rua entre mulheres que passam o dia em casa cumprindo o papel que lhes foi imposto há séculos. No entanto trata-se de um diálogo da dupla sertaneja Maiara & Maraísa com a cantora Naiara Azevedo durante o clipe de sua música 50 Reais. Os homens que não se ofendam, mas as mulheres chegaram para mostrar o lado delas das histórias contadas por eles, durante anos, no cenário do sertanejo – do modão ao universitário. 

As três são apenas algumas das mulheres que se destacaram no cenário atual do sertanejo universitário. As irmãs Simone & Simaria, antigas backing vocals de Frank Aguiar, começaram a fazer sucesso, como dupla, no ano passado. Também conhecidas como As Coleguinhas, elas estouraram primeiro pelo Norte e Nordeste do País. Suas músicas chegaram tímidas ao Centro-Oeste, Sudeste e Sul, mas não demoraram muito para mostrar a que vieram. “Estou muito nervosa, pois Goiânia é a terra do sertanejo; nós temos que agradar aqui”, disse Simaria ao Essência na primeira entrevista que concedeu ao jornal, em maio de 2015, quando só metade do País sabia que, da casa,  elas só iriam levar “o violão e o cachorro”.

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O refrão de Meu Violão e o Nosso Cachorro grudou nas mentes dos brasileiros,  e nem deu tempo de desgrudar quando as outras foram aparecendo na grande mídia. De Cristianópolis, a goianaMarília Mendonça compõe desde os 12 anos, e cantores como Lucas Lucco, Joelma, Jorge & Mateus, Wesley Safadão, Cristiano Araújo, João Neto & Frederico e Henrique & Juliano já haviam interpretado suas músicas antes de ela lançar o seu primeiro álbum, aos 20 anos, em julho de 2015. Hoje, pouco mais de um ano após o lançamento, ela virou quase uma rainha da sofrência. Quem vê sua idade questiona de onde ela tira tanta história de mulheres decepcionadas para contar. Em entrevistas concedidas a outros veículos, ela reforça que sua filosofia é a da valorização da mulher.

É possível perceber que o objetivo foi cumprido ao observar o público marjoritariamente feminino nos shows da cantora. Marília não veio para ser mais uma mulher intérprete de sertanejo; ela veio para mostrar que mulher é protagonista de suas histórias, e que bebe, sim, e é forte, sim. Também compondo, as gêmeas tocantinenses Maiara & Maraísa cantam desde os 5 anos de idade e lançaram carreira em 2013. No seu maior sucesso, 10%, as irmãs reforçam que a bebida também é refúgio para as mulheres decepcionadas no amor, e não um item de consumo exclusivo de homens. Beber e se embriagar também é coisa de moça.

Naiara Azevedo, que contou com a participação das tocantinenses na sua música de lançamento de carreira, 50 reais, confessa que a história é dela logo no início da música. As mulheres do sertanejo universitário têm estado em um âmbito do feminismo que empodera e dá protagonismo, mas, assim como funk, a rivalidade entre mulheres, também construída pelo machismo, ainda está presente em muitas das letras. É o caso de 50 reais, que coloca a mulher em uma posição de autonomia, mas, no refrão, mostra a dúvida da eu lírico em punir o homem traidor ou a mulher. 

Para o seu casamento, Naiara convidou uma dupla que dá os primeiros passos no mercado, May & Karen. De São Paulo, as duas têm plena consciência de que ser mulher em uma sociedade machista é difícil. Em entrevista ao Essência, realizada na última segunda-feira (1º), Karen reforça que “antigamente, o papel da mulher era ficar em casa, lavando roupa, sofrendo, enquanto o homem ia cantar sobre isso; agora, ela está no palco fazendo igual”. É nisso que se pauta o chamado ‘feminejo’ – feminismo com sertanejo –, em colocar as mulheres em posição de igualdade com o homem a partir da música, que tem letra, melodia, composição e interpretação protagonizadas por mulheres. 

Mas a história das mulheres no sertanejo não começou agora. De fato, com as discussões de gênero à flor da pele, o destaque e reconhecimento maior vieram na atualidade, quando o que está no auge é o sertanejo universitário. Mas, mesmo que pontualmente, é preciso lembrar de mulheres que fazem a música dos sertões há tempos. Inezita Barroso é uma delas. Conhecida pelo programa Viola, Minha Viola, a cantora fez história na música caipira. Além de cantora e apresentadora de TV e rádio, ela foi atriz, instrumentista, bibliotecária, folclorista e professora. E, de fato, ensinou ao Brasil como se faz música caipira ao som da viola.

Roberta Miranda e Paula Fernandes são outros nomes de mulheres do sertanejo que não devem ser esquecidos. Tocadora das boas, mesmo, foi a sul-mato-grossense Helena Meirelles. A cantora, violeira e compositora brasileira ficou conhecida mundialmente por seu talento com a viola caipira. Criada rodeada de violeiros, aprendeu a tocar o instrumento, sozinha e às escondidas, já que fora proibida de tocar. Dependente apenas de si, Helena seguiu sertão adentro e afora tocando. A fama na grande mídia veio depois de um desaparecimento de 30 anos. A irmã a levou para São Paulo, onde os grandes meios a descobriram. A primeira vez no teatro veio aos 67 anos de idade. Apesar do sucesso tardio, a música de Helena é símbolo cultural para os demais sul-mato-grossenses. 
Além dos nativos do Mato Grosso do Sul, a goiana Paula de Paula também se inspira em Helena Meirelles e em outras como Inezita Barroso. Também criada no contexto do modão e da viola, hoje, ela é violeira, cantora e compositora. Em entrevista ao Essência, Paula conta sobre sua história com a música caipira e sobre como é ser mulher nesse contexto.

ENTREVISTA – Viola caipira também é coisa de mulher – Paula de Paula: “Há muitas mulheres cantoras, compositoras, artistas que estão às vezes engavetadas por causa de um cenário machista”

Como começou a sua relação com a música? E como o modão entrou na sua vida?
Começou na infância. Meu pai cantava com a minha mãe em casa e nas festas de família. Ele sempre tocou violão e sanfona. O modão entrou da mesma maneira. Meu pai sempre gostou de música e sempre gostou, também, de música caipira, que é a referência que ele tem. Então, eu escuto, desde menina, os modões, principalmente os duetos com a primeira e a segunda voz, que são características do sertanejo caipira. 

Quais suas influências?
Uma das minhas influências é o meu pai e, também, as influências que ele teve – na música caipira, por exemplo, muitas duplas das antigas como Tonico & Tinoco, Tião Carreiro & Pardinho. Na minha geração, eu peguei Leandro & Leonardo, Zezé Di Camargo & Luciano, Chitãozinho & Chororó. Então tudo isso estava muito presente na minha vida. E, nesse início, foi uma influência meio subjetiva, da qual eu não tinha muita consciência. Com o tempo, eu fui pesquisando mais e cheguei a coisas diferentes. Até porque eu também tenho outras referências – além da família, dos meus pais. Então eu comecei a ter influência do rock nacional, por exemplo, Cássia Eller e Legião Urbana na adolescência. Também tenho muita influência da música nordestina, do forró, do Luis Gonzaga, Marinês, dos ritmos populares, do baião, do xote, do maracatu. Até dentro da música caipira, com o passar do tempo, eu fui pesquisando outras coisas. Pesquisei as mulheres que tocam, como a Inezita Barroso, que é uma influência muito forte,  desde quando eu assistia ao Viola, Minha Viola. Admiro muito a Inezita como intérprete e pesquisadora. Hellena Meireles, que eu conheci há menos tempo, é uma violeira do pantanal sensacional também. As influências são diversas, de diferentes ritmos, mas a maior influência vem da música brasileira. Na música estrangeira, minha maior influência está no folk, no country, que tem um pouco de relação, também, com o caipira brasileiro.

Como começou a compor?
Eu sempre gostei de escrever. Tenho um diário de quando eu tinha uns 6, 7 anos de idade, em que eu escrevia. Comecei a compor, justamente, por já escrever, porque a música é poesia. Eu comecei a tocar violão já com uns 14 ou 15 mais ou menos. Aquilo ali foi me apaixonando e, como eu já escrevia, comecei a compor. Mas o trabalho mesmo com composição começou um pouco mais tarde. Foi já com 18, 19 anos que eu fiz o Canarinho Cantador, que foi uma das primeiras músicas com a qual eu participei de festival e fui ingressando no cenário goiano. 

Algumas artistas da sua geração costumam migrar para outros ritmos, mesmo tendo sido criadas no contexto da música caipira. Por que você resolveu continuar nela? O que te apaixona?
Eu não tenho contato com essas artistas da grande mídia, então eu não saberia dizer se elas migraram. Tenho uma forte influência caipira, que junta a outras referências, e acaba virando outra coisa. Sou uma admiradora forte da música caipira. O que me apaixona é a nossa cultura mesmo – a essência, o autêntico. Gosto do caipira que conta e canta o seu cotidiano, que traz essa característica dos duetos, da primeira e da segunda voz, da viola caipira, da sanfona goiana. Todo esse universo me apaixona muito, acredito também que por ter sido criada nesse âmbito, então a gente tem saudade, é nostálgico. O que me faz continuar é o fato de ser uma grande admiradora. Mas eu não sei exatamente se eu posso falar que faço música caipira. Acho que não tem como classificar; minha música é uma mistura disso tudo.  

E como é ser uma mulher nesse universo de ‘cabras-machos’?
Eu participo do grupo Encontro Violado. Nós somos sete violeiros, e eu sou a única mulher. No contexto de vários festivais de que eu participo, eu vejo que, realmente, a mulher nesse cenário ainda é minoria. Mas, também, são mulheres que estão se destacando com o tempo. Eu acho que, na maioria dos meios, a mulher está revolucionando. Mas a gente sofre essa opressão em vários meios; acredito que no jornalismo também seja assim. Para mim é natural, porque eu já penso que não tem que ter diferença de qualidade e de talento por ser homem ou mulher. 

Alguma vez você já foi desmerecida por ser mulher?
Uma vez eu fui tocar no Sesi com o Encontro Violado, e a gente foi tocar junto com um violeiro muito conhecido, que é o Biancardinim, e eu me  lembro de um comentário dele: “Nossa, uma mulher neste meio!”. Isso foi no camarim e, quando a gente foi tocar, na frente do público, ele falou de novo: “Nossa, temos uma mulher”, como se fosse uma anomalia, como se fosse algo muito raro, como se a mulher não pertencesse àquele meio. Ele falou brincando, mas com certeza é um machismo embutido. Eu me lembro de responder: “Sim, uma mulher aqui. Mulher também toca, mulher também compõe, mulher também toca viola caipira”. E é muito bom quando a gente encontra outras mulheres nesse ramo. Uma vez, eu conheci uma violeira muito gente boa e talentosa de São Paulo em um festival de que participei. As mulheres estão se destacando, estão entrando nesse universo e, para mim, é muito bom. Eu me sinto muito feliz de estar nesse meio, de representar a mulher nesse meio da viola caipira. 

Como você acha que a música pode colaborar no engajamento por emancipação da mulher e na luta contra a opressão de gênero?
A música pode ajudar muito nessa luta, como porta voz. Quando a gente canta, a gente está em evidência. É a nossa hora de falar, de mandar uma ideia, por meio da poesia, da musicalidade, da dança, do ritmo. É uma ótima oportunidade para a gente se engajar em favor das mulheres. Só o ato de nós mulheres estarmos ali, na frente, cantando, já é positivo. Isso já é uma forma de engajamento. A gente tem essa consciência e busca isso no nosso dia a dia. Só de você estar ali, representando,  já é muito bom. Eu tenho um projeto que se chama Ave e Eva, que é uma dupla de mulheres compositoras. As nossas letras, o que a gente canta, são sobre a nossa atitude de mudança, de afirmação da mulher. E acho que a música pode ajudar muito por ser uma porta voz, por chegar às pessoas e por agregar. A música comunga, ela cura. 

Como você explicaria esse boom de mulheres no sertanejo universitário hoje? Em sua opinião, o que é positivo e o que ainda é preciso desconstruir?
Do pouco que eu tenho acompanhado desse destaque crescente de mulheres no sertanejo universitário, eu avalio como muito positivo. Eu acho ótimo que as mulheres estejam se destacando nesse cenário. Acho que elas têm de se destacar mesmo, tocar, cantar, aparecer. Porque há muitas mulheres cantoras, compositoras, artistas que estão às vezes engavetadas por causa de um cenário machista. Que essas mulheres se afirmem mesmo, soltem a voz, componham, cantem, encantem e aumentem o fluxo de mulheres no ramo para influenciar outras mulheres e fortalecer todo esse coletivo. Então, nesse âmbito, eu não diria que tenha nada para desconstruir. Se formos falar do ramo, do sertanejo universitário em si, aí é outra história, mas isso não seria mais uma questão de gênero, seria uma questão das mídias, e aí já é outro assunto. Do pouco que tenho observado, as letras das músicas expressam o sentimento do outro lado. Então, agora, as mulheres estão cantando e expressando o lado delas, o que acontece com elas, o que elas sentem. Falam de quando elas querem beber, se embriagar, soltar a voz, dançar e se divertir. É uma oportunidade para que outras mulheres se identifiquem e também expressem os seus sentimentos.

BREVE HISTÓRICO DAS MULHERES NA MÚSICA BRASILEIRA

Por muito tempo, a diferença entre homens e mulheres foi colocada sob uma visão biológica que vinculava os atributos comportamentais de ambos às suas características corporais. De fato, a identidade de gênero é reconhecida por outrem pelo corpo, mas associar as características físicas ao comportamento seria igual a dizer que mulher é sinônimo de feminino e homem, sinônimo masculino. Essa ideia perpetuou os estereótipos que apontam os papéis do homem e os papéis da mulher na sociedade como imutáveis e pré-definidos. “Homem não chora”, “Mulher é sensível” são algumas das falácias generalizadoras. Ao homem, caberia o troféu de forte provedor, e à mulher o isolamento doméstico. O feminismo apareceu, então, para desmontar esse determinismo biológico que justifica a opressão da mulher. 

Essa ideia equivocada que coloca homens e mulheres em posições hierárquicas, em que ele está acima dela, está presente também na música.  Por isso, por anos o protagonismo na música era exclusivo de homens. Eles compunham o eu lírico era masculino e, por mais que falasse de uma mulher, era a perspectiva deles sobre aquela mulher. Apesar de estar contando no passado, isso não mudou muito na atualidade. Tanto é que, no Brasil, até meados do século 20, as mulheres eram apenas intérpretes na música popular. Assim, Chiquinha Gonzaga foi reconhecida como a primeira grande compositora brasileira, fazendo sucesso com a música Ó Abre Alas em 1899. Pedindo para passar, Chiquinha anunciava que a mulher chegava apara ocupar o seu protagonismo na música popular brasileira.

Mesmo após Chiquinha, o processo continuou lento. As mulheres que se seguiram, majoritariamente, dedicaram-se à composição de músicas instrumentais. Na década de 1950, Dolores Duran aparece como a pioneira na composição de canções com letra e melodia. De lá para cá foram, aos poucos, aparecendo mulheres de grande significância para a música brasileira. O nome de Elis Regina, por exemplo, não pode estar de fora quando é para se falar da história da música popular. Rita Lee é outra que tornou-se ícone do movimento tropicalista e revolucionou o mundo da música e a discussão de gênero. 

Aos poucos, as mulheres foram dando seus passos e pulos no mundo da letra com melodia. De fato, não houve uma revolução que marcou o surgimento da mulher em todos os ritmos musicais. Cada um tem suas particularidades e, com isso, seus machismos embutidos que envolvem desde a sexualização da mulher à subestimação e imposição de papéis. Mas é possível dizer que chegamos a uma altura do campeonato em que a discussão sobre igualdade de gêneros permeia todas as áreas da música brasileira.

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