Carmilla: conheça a vampira que inspirou Drácula

Sem rodeios, a obra de Sheridan Le Fanu narra a conturbada relação entre uma jovem e uma vampira, em plena Inglaterra vitoriana

Postado em: 29-06-2023 às 15h02
Por: Cecília Epifânio
Imagem Ilustrando a Notícia: Carmilla: conheça a vampira que inspirou Drácula
Ilustração de D. H. Friston para a primeira edição de Carmella, para a revista The Dark Blue (1872) | Foto: Branch

Escrito pelo irlandês Bram Stocker, Drácula (1897) é considerado a base da mitologia vampiresca. O protagonista do romance gótico é a maior referência da criatura. Mas, ao contrário do que muitos pensam, Stocker não criou essa história totalmente do zero.

Lendas envolvendo os vampiros já eram bastante comund na época. E os vários relatos de pessoas que afirmavam terem visto um ser de dentes extremamente afiado alimentavam a literatura. O livro The Vampyre, escrito pelo britânico John William Polidori em 1819, é considerado uma das maiores obras modernas sobre o assunto.

Tirando o foco do livro de Polidori, vamos falar sobre outra obra envolvendo vampiros: Carmilla, do também irlandês Sheridan Le Fanu, e que serviu como uma possível inspiração para o conde vampiro de Bram Stocker. A história de Le Fanu não ficou marcada por sua trama fantástica, mas por abordar uma relação homoafetiva em pleno século 19.

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Carmilla, a história

A história foi lançada em capítulos, que acompanhavam um periódico literário londrino entre os anos de 1871 e 1872. A trama é narrada por Laura, uma jovem inglesa que, após um estranho acidente na etrada, acaba abrigando uma mulher misteriosa em casa: Carmilla.

No começou, Laura fica receosa com a presença da estranha, que se parece muito com uma mulher que aparecia em seus sonhos de infância. Mas rapidamente esses sentimentos são substituídos por uma intensa relação calorosa envolvendo as duas.

Enquanto o romance floresce, um pânico se instaura na região: diversas moças da cidade estão adoecendo, repentinamente e grave – algumas chegando à morte. Não demora muito para que a jovem Laura adoeça também.

(P.s.: Daqui em diante daremos alguns spoilers sobre o livro. Caso queira pular, pode seguir a leitura para o próximo intertítulo.)

Laura passa a ter o mesmo sonho, várias e várias vezes. Nele, ela recebe a visita de uma estranha figura que lembra um gato gigante em seu quarto. A jovem sente duas pontadas em seu pescoço e observa a sombra misteriosa se trasnformar em uma mulher – que sai de seu quarto sem precisar abrir a porta. Ela acorda e vê duas marcas onde havia sido atacada no sonho.

Quando um general que perdeu a sobrinha para a misteriosa doença visita o pai de Laura, ele acaba reconhecendo Carmilla. Na verdade, a mulher era a vampira Mircalla. O encontro entre eles acaba em briga. Descoberta, Carmilla foge.

Após o incidente, o pai de Laura, o general e um caçador de vampiros, vão atrás da tumba escondida da vampira. Eles enfiam uma estaca em seu coração, cortam-lhe a cabeça e queimam seus restos. Laura se recupera, mas não por completo – a memória de Carmilla continua a assombrá-la para sempre.

Pioneira

A história de Carmila saiu 26 anos antes de Drácula, e grande parte dos historiadores concordam que houve uma inspiração.

A primeira semelhança é no título das histórias: ambas trazem apenas o primeiro nome do vampiro. As duas são narradas em primeira pessoa e têm personagens parecidos: uma caçador de vampiros que aparece no final da história com um conhecimento oculto sobre as criaturas e uma vampira descrita como um ser sensual.

Mas vale ressaltar que nenhum dos dois escritores inventou o gênero vampiresco. A ficção gótica do século 19 já possuia algumas histórias envolvendo vampiros em poemas. O próprio Le Fanu pode ter se inspirado em um poema escrito pelo romântico S. T. Coleridge. Escrita na virada do século, a história conta sobre a vampira Geraldine, que seduz a jovem heroína Christabel, que dá título ao poema. Porém, essa história ficou inacabada.

Vampiras lésbicas da Era Vitoriana

Parte do que torna Carmilla tão relevante é o fato da obra girar em torno de duas mulheres – que acabam por viver uma relação homossexual.

A Era Vitoriana britânica (1837-1901) foi marcada por diversos códigos morais bastante rígidos e uma forte repressão sexual. O relacionamento entre homens era poribido por lei. A lesgislação nada falava sobre casais lésbicos. Mas, claro, eles existiam – e eram igualmente mal vistos.

Essa repreensão serviu como fonte para várias histórias do gênero. Os contos envolvendo vampiros virou uma forma expressar esses desejos reprimidos. Mas, em alguns casos, ensinavam uma lição sobre os perigos de sucumbir a tais paixões.

Laura teve a oportunidade de experimentar essa moral vitoriana, já que ao mesmo tempo que sente repulsa ela se sente atraída pela criatura. Essa dualidade, bastante comum em contos de vampiros, é intensificada pelo fato do tal vampiro ser uma mulher. Conforme Carmilla a seduz, os sentimentos da jovem protagonista vão ficando ainda mais confusos.

A relação entre elas não é velada ou representada metaforicamente. As trocas de carícias são narradas sem rodeios, e a próximidade romântica delas é incontestável. Em uma época em que a sensualidade era algo que deveria ser reprimida, a sensualidade entre duas mulheres era um escândalo.

Infelizmente, por décadas, Carmilla permaneceu em esquecimento. Mas, quem sabe agora, mais de 150 anos após sua publicação, sua história não possa ser vista com outros olhos?

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