Retrato da pobreza: dados revelam aumento de 85% no número de brasileiros com fome em 2 anos
Com preço do boi nas alturas, população busca outros métodos de alimentação em alimentos superprocessados como o macarrão instantâneo
Por: Alexandre Paes
Dia após dia, a fome tem voltado aos noticiários nacionais. Recentemente foram registradas imagens de uma legião de pessoas recolhendo ossos e pelancas que eram descartados por supermercados. O fato ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, mas esse retrato também acontece em outras regiões do país. No Brasil a fome atingiu 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar.
No ano passado o auxílio emergencial tinha valor máximo cerca de R$ 1.200, o que proporcionava a compra de até duas cestas básicas. Agora, mesmo seu maior valor sendo R$ 375, não compra nem 60% da cesta na região metropolitana de São Paulo. Em relação a 2018 (onde 10,3 milhões de pessoas viviam em situação de fome extrema), são quase 9 milhões de pessoas a mais nessa condição. Foram registrados 19,1 milhões de brasileiros com fome em 2020, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).
Em meio a essa realidade, as crianças são as mais afetadas, já que são os lares com pequenos os mais propensos a estarem na pobreza e na extrema pobreza. Para o economista Luiz Carlos Ongaratto a pandemia é um agravante nessa situação, talvez um acelerador da condição que vivemos. “O auxílio emergencial perdeu muito seu poder de compra com as questões de inflação, pois o valor não é suficiente para o sustento, apenas seria um complemento de renda” afirma.
Mesmo antes da pandemia, uma em cada três crianças brasileiras sofria de anemia por falta de ferro, segundo estudo da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos),o economista comenta que a pandemia é um agravante nessa situação, talvez um acelerador da condição. “A falta de uma política estruturada para geração de empregos é determinante”, ressalta. Esses e outros dados que mostram como a fome voltou a ser um drama cotidiano no Brasil.
De acordo com estudo do grupo de pesquisas Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy (Comida por Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares em uma Bioeconomia, em tradução livre), da Universidade Livre de Berlim, a insegurança alimentar é extremamente desigual. Os mais altos percentuais de insegurança alimentar são registrados em famílias com apenas um responsável pela geração de renda (66,3%).
Aumento da carne bovina
Em 2021, o consumo de carne bovina no Brasil deverá ser de 26,4 quilos por pessoa, uma queda de quase 14% em relação a 2019, ano anterior à pandemia, e de 4% se comparado a 2020. Esse é o menor nível registrado para consumo de carne bovina no país em 26 anos, segundo a série histórica da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), com início em 1996.
Até agosto deste ano, as carnes acumulavam aumento de preço de 30,8% nos últimos 12 meses, bem acima da alta de 9,68% da inflação geral, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A alta de preços da carne começou antes da pandemia, puxada pela demanda da China, cujo rebanho suíno foi fortemente afetado pela peste suína africana, e tendo em vista que a exportação de carne bovina do Brasil foi destinado ao pais asiático.
A tendência foi acentuada no ano passado pela alta do dólar, que estimula as exportações, reduzindo a oferta do produto no mercado interno. O economista comenta que o aumento do preço da carne bovina é o principal fator da diminuição do consumo. “A diminuição da renda devido ao desemprego e informalidade, somada aos salários baixos, são fatores que contribuíram pra isso, e acabam afetando aqueles que não possuem capital”, argumenta. E assim a carne vermelha sumiu dos prato dos brasileiros mais pobres.
Auxilio Emergencial e consumo de macarrão instantâneo
Considerando que as pessoas também têm aluguel e contas básicas para pagar, a perda do poder de compra do auxílio emergencial dá uma dimensão da precariedade em que têm vivido os brasileiros mais pobres. Um dos fatores que explica a crescente dificuldade dos brasileiros em se alimentarem adequadamente é a perda do poder de compra desse beneficio, em meio à redução do valor e à alta da inflação.
Nos açougues, em meio aos preços proibitivos da carne, consumidores recorrem a cortes antes desprezados pela maioria, como pés e miúdos de galinha. Segundo dados da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados), o consumo de macarrão instantâneo movimentou R$ 3,2 bilhões em 2020, ante R$ 2,7 bilhões em 2019.
Luiz Carlos Ongaratto comenta que todos os fatores da pandemia, ligados ao desemprego ou informalidade da prestação de serviços, faz com que a sociedade recorra a outras formas de alimentação, e isso pode explicar esse aumento no consumo do famigerado “miojo” [macarrão instantâneo]. É um produto destinado ao mercado de baixa renda, e o consumo aumenta quando a renda diminui, devido ser um produto de baixo preço”, afirma.
Sem dinheiro, sem botijão
Diante da alta do preço dos alimentos e do botijão de gás, muitas famílias têm tido que escolher entre a compra de comida ou do combustível. Em agosto, o preço médio do botijão de gás de 13 kg estava em R$ 93, segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), mas já superava os R$ 100 em diversos Estados brasileiros, como Mato Grosso (R$ 114), Rondônia (R$ 111), Amapá (R$ 109), Roraima (R$ 109) e Pará (R$ 102).
Em meio aos preços exorbitantes, as notícias de queimados por utilizar o álcool como elemento de combustão cresceu, de forma negativa. Aqui em Goiás, em menos de dois meses, pessoas de três famílias diferentes sofreram queimaduras e foram internadas depois de usarem álcool para cozinhar. Na mesma situação, um homem morreu em Goiânia, com 50% do corpo queimado.