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sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
LUTA

Cristina Lopes Afonso relembra trajetória de violência para a luta

A trajetória de Cristina Lopes Afonso, que foi queimada por um ex-namorado e se tornou um símbolo na luta antiviolência contra a mulher, é relembrada em rede nacional

Postado em 10 de abril de 2016 por Sheyla Sousa
Cristina Lopes Afonso relembra trajetória de violência para a luta
A trajetória de Cristina Lopes Afonso

Júnior Bueno

‘Meu nome é Cristina Lopes Afonso, sou nascida em Cianorte, no estado do Paraná. Aos 15 anos eu fui para Curitiba, passei em Educação Física e entrei na faculdade. Eu tive um namoro, com um médico já formado, 16 anos mais velho que eu, que de uma maneira brutal tentou me matar usando álcool e fogo.” A mulher que conta esta história, de um fôlego só, nem pisca quando toca nas partes mais dolorosas de sua vida. 

Para ela, passados 30 anos do trauma que mudou completamente sua vida, falar de uma tentativa brutal de assassinato é tão corriqueiro quanto narrar como sua vida mudou, a ponto de transformar sua dor em uma bandeira contra a violência doméstica e no tratamento de pessoas queimadas. O fato que mudou sua vida a colocou frente a uma realidade chocante, lhe deu uma nova cidade para morar e a fez descobrir uma nova carreira. Mas a história de Cristina precisa ser contada sem saltos. Vamos voltar ao começo.

Cristina nasceu de uma família numerosa, com vários irmãos e irmãs. Aos 15 anos, ela viu a chance de começar uma carreira, ao passar no vestibular para Educação Física. Era ainda uma adolescente quando se encantou por um homem mais velho, com quem teve um namoro que parecia de conto de fa­das. Mas o romance acabou de forma trágica, e quase vitimou a garota cheia de sonhos. “Para mim foi difícil compreender o que muitas mulheres enfrentam todos os dias, porque eu vinha de uma família onde isso não era realidade. Eu tive esse contato duro e cruel com a realidade da agressão à mulher sendo vítima dessa agressão”, diz ela. “Uma pessoa que diz te amar e a partir de um rompimento tenta te matar”.

O crime, a dolorosa recuperação e o julgamento do criminoso foram notícia em todo o Brasil e no exterior, em 1986. Cristina ficou quatro dias internada em um hospital em Curitiba e, diante do prognóstico de que não sobreviveria, sua família se reuniu e, com condições para ter acesso a um tra­tamento hospitalar melhor, veio para Goiânia, onde havia um avanço – ainda tímido em 1986 –, no tratamento de pessoas queimadas. “Eu fui avaliada em Goiânia e não havia muita espe­rança, era uma situação crítica e para eu morrer, era questão de poucos dias, segundo os médicos,” diz Cristina. 

Surpreendendo todas as expectativas e com total dedicação da família, ela começou a se recuperar. Seu pai já era de idade avançada, com 86 anos de idade (a mãe já era falecida) e vendeu uma fazenda no Paraná para custear o tratamento. Os irmãos também vieram para se revezar entre os cuidados com Cristina e a ajuda no tratamento. Chegaram a doar pedaços de pele das pernas. Com o passar dos meses, foi para os Estados Unidos, em busca de um tratamento que então era novo: a confecção de uma malha de tecido que envolvia o corpo para acomodar melhor a pele. “As cicatrizes vão se formando e se avolumando nas pessoas que sofreram queimaduras, devido a um crescimento da matriz celular, e essa malha ajuda a pele a ficar no lugar,” ela explica.

Passada a fase mais dura do tratamento, ela pôde voltar a Curitiba e se dividia entre as duas cidades, vindo a Goiânia para o tratamento e voltando para a vida normal na capital paranaense. E ela deu mais um passo decisivo na guinada que sua vida estava tomando: fez vestibular para Fisioterapia. “Minha intenção era trabalhar com queimaduras. Vir a Goiânia, implementar um serviço de queimados. Eu fundei e dirigi, durante 23 anos a clínica de queimados.” Como em Goiânia, na época não tinha o curso de Fisioterapia, Cristina estudou em Curitiba. E fundou e lecionou no curso de Fisioterapia, que era público. E foi pioneira na disciplina de Queimaduras na graduação.

“O queimado é completamente estigmatizado. Não há especialidade autônoma na área da medicina. Não se aprende a cuidar de queimados na universidade, nem na Medicina, nem na Enfermagem ou na Fisioterapia. No Brasil, toda equipe de queimados é subordinada à área de cirurgia plásticas e em alguns lugares do mundo, à dermatologia. E nenhum desses profissionais conseguem dar conta do paciente por completo,” ela diz. 

O terceiro round foi colocar o homem que tentou matá-la na cadeia. Com a visibilidade que o caso ganhou, no Brasil e no mun­do, havia uma expectativa de que o agressor pagasse pelo crime. O julgamento ocorreu em janeiro de 1989, três anos depois daquele fatídico dia. “Para as leis brasileiras e para a morosidade brasileira, isso foi um tempo recorde”. E a punição foi exemplar. “Foi a primeira vez no Brasil que um crime contra a mulher, e com a vítima ainda viva, subiu para o júri e o réu foi condenado. Ele pegou 21 anos de pena,” conta. 

A condenação foi um marco na luta contra a violência contra a mulher, mas Cristina ainda persiste na importância no tema sempre urgente. “A Maria da Penha só conseguiu que seu agressor fosse condenado após 20 anos. A Lei Maria da Penha é fruto de uma punição de um tribunal internacional onde o Brasil é signatário. A lei não veio por vontade política, é importante que se destaque.”

Ao longo desses anos, sua história foi transformada em uma bandeira, na vida pública, ao se eleger vereadora, a mais votada em Goiânia em 2012. Sua história foi relembrada no programa A Hora do Faro, da Record, há cerca de um mês. Para ela, relembrar não é sofrer, é saber que ela transformou uma tragédia em uma jornada de mudanças, em si mesma e no mundo.

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