Mulheres param a vida para manter o sistema de pé
Sem apoio do Estado, cuidadoras informais enfrentam exaustão, doenças crônicas e abandono institucional no Brasil que envelhece
Ela não aparece nos relatórios do INSS, não consta nas estatísticas da economia formal e raramente é citada nos programas de governo. Mas é ela quem alimenta, dá banho, cuida das medicações, leva ao médico e limpa as roupas e as memórias de alguém que, aos poucos, deixa de reconhecer o mundo. No Brasil, essa pessoa tem um perfil: mulher, na faixa dos 50 anos, parente próximo e sem salário. É o que mostra um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizado entre fevereiro de 2022 e janeiro de 2023, com 381 participantes identificados como cuidadores informais de pessoas com demência. A pesquisa, publicada na revista científica Alzheimer’s & Dementia: Translational Research & Clinical Interventions, revela que 93,6% dos cuidadores são mulheres, majoritariamente filhas, esposas ou noras dos pacientes.
A função, embora cotidiana, permanece fora do enquadramento jurídico do que se considera trabalho. Mais de 94% dessas mulheres não recebem qualquer remuneração. Quase metade deixou o emprego para cuidar de um familiar em tempo integral. O estudo aponta que 42,8% romperam vínculos formais com o mercado de trabalho, interrompendo também projetos de vida, rendas estáveis e perspectivas de aposentadoria. No entanto, não se trata apenas de uma questão econômica. O cuidado também impõe desgaste físico e emocional: 62% das entrevistadas relataram ausência total de suporte emocional e 46% disseram sentir-se despreparadas para a função.
A escalada do problema é proporcional ao envelhecimento da população. Segundo o Relatório Nacional sobre a Demência, publicado pelo Ministério da Saúde em 2024, 8,5% dos brasileiros com mais de 60 anos convivem com a doença, o que representa cerca de 1,8 milhão de pessoas. Como cada paciente depende de um cuidador, o número estimado de pessoas nessa função já se aproxima de 2 milhões. Com base em projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), espera-se que o país registre 5,7 milhões de diagnósticos de demência até 2050. É um problema de saúde pública que avança de forma previsível, mas segue ignorado nas políticas estruturais.
O estudo da Unifesp desmonta a ideia de que o cuidado é apenas um gesto afetuoso. Ele é rotina, técnica, sobrecarga. Envolve tarefas complexas como controle de medicamentos, acompanhamento clínico, resolução de crises comportamentais e administração da casa. Só que sem treinamento, sem descanso e sem revezamento. Uma em cada três cuidadoras não tem ninguém com quem dividir as responsabilidades da semana. Alguns passam meses sem uma única noite de sono ininterrupto. Outras desenvolvem quadros crônicos de ansiedade, insônia, hipertensão e depressão. De acordo com um levantamento da Universidade de Brasília (UnB), publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva em 2023, mulheres que exercem o cuidado informal de parentes com doenças neurodegenerativas têm 38% mais chances de desenvolver doenças metabólicas e cardiovasculares.
Não há, hoje, no Brasil, uma política pública estruturada voltada para esse grupo. O Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (2021–2030), elaborado pelo Ministério da Saúde, menciona o apoio a famílias, mas não detalha diretrizes operacionais para o cuidado da demência. O mesmo ocorre nos programas do Sistema Único de Saúde (SUS), onde faltam equipes para orientar e acompanhar cuidadores. Dados da Fiocruz, coletados em 2024, mostram que mais de 70% dos cuidadores informais nunca participaram de um curso ou receberam orientação médica adequada sobre como agir diante de quadros como o Alzheimer.
Em outros países, a função já ganhou outro status. Alemanha, França e Japão criaram políticas de cofinanciamento do cuidado domiciliar, reconhecendo o tempo dedicado por familiares como parte da rede de assistência à saúde. Esses países remuneram, treinam e oferecem suporte emocional aos cuidadores, entendendo que a sustentabilidade do cuidado passa por reconhecer quem cuida. No Brasil, a ausência de um marco regulatório mantém essas mulheres numa espécie de limbo legal: não são profissionais, mas também não são apenas familiares. Estão em jornada permanente, sem direitos, sem férias, sem hora de descanso.
Os pesquisadores envolvidos no estudo defendem a criação de programas nacionais de capacitação, com oferta de cursos gratuitos, suporte psicológico, benefícios sociais e serviços de revezamento. As ações deveriam integrar o SUS, com atuação das equipes de saúde da família, centros-dia e núcleos de apoio psicossocial. Mas, até agora, as iniciativas públicas são localizadas. A maior parte do esforço segue nas mãos das famílias, ou, mais precisamente, nas mãos das mulheres que compõem essas famílias.
Entre os dados, aparece um paradoxo. Apesar da sobrecarga, 44% das cuidadoras afirmaram sentir algum tipo de recompensa subjetiva ao exercer o cuidado. Não se trata de romantismo, mas de sentido. O cuidado, mesmo pesado, é visto por muitos como um gesto de retribuição ou responsabilidade. Só que o sentido não protege da exaustão. E propósito, por mais nobre que seja, não substitui políticas públicas.
O avanço do envelhecimento, a redução dos vínculos familiares e a ausência de políticas públicas estruturadas transferem para as mulheres a responsabilidade integral pelo cuidado. Isso agrava o adoecimento físico e mental dessas cuidadoras e sobrecarrega os serviços de saúde. São elas que mantêm o cuidado funcionando, sem salário, sem descanso e sem respaldo do Estado. Sem essas mulheres, o sistema entra em colapso. Com elas, do jeito que está, o colapso apenas se desloca. O que falta não é dedicação — é política.