Maldade e impunidade explicam ataques que terminam em morte

A jovem que sofria de depressão e foi erroneamente apontada por perfis de fofoca como um affair do humorista Whindersson Nunes, morreu na última sexta-feira (22)

Postado em: 29-12-2023 às 08h53
Por: Ronilma Pinheiro
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A jovem que sofria de depressão e foi erroneamente apontada por perfis de fofoca como um affair do humorista Whindersson Nunes, morreu na última sexta-feira (22) | Foto: Reprodução/ Instagram

“Ficou bem óbvio que o intuito disso é me ridicularizar, da mesma forma que já tentaram outras vezes. Eu já perdi pessoas das quais eu amava demais por conta desse tipo de coisa. Sendo assim, eu pergunto: porque? Qual a intenção por trás de tudo isso? Qual a graça que existe em infernizar a vida de alguém dessa maneira?”, este é um trecho do desabafo de Jéssica Vitória Canedo, 22 anos, antes de tirar a própria vida após ser vítima de fake news na internet.

A jovem que sofria de depressão e foi erroneamente apontada por perfis de fofoca como affair do humorista Whindersson Nunes, morreu na última sexta-feira (22). Prints falsos que simulavam uma conversa dela com Whindersson foram divulgados pelo famoso perfil  “Choquei” nas redes sociais. Após a divulgação dos prints, Jéssica passou a sofrer ataques na internet.

Na tentativa de cessar os xingamentos e ameaças, a jovem chegou a publicar uma mensagem no Instagram pedindo que os posts falsos fossem excluídos. O humorista também informou que a notícia era falsa. O responsável pelo perfil, Raphael Sousa, no entanto, debochou da mensagem de Jéssica. “Avisa para ela que a redação do Enem já passou. Pelo amor de Deus”, escreveu nos comentários da publicação da jovem. Após a repercussão negativa, Raphael excluiu a mensagem.

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O psiquiatra clínico e forense Mendes Vargas, ao comentar o assunto, afirma que não costuma “satanizar ou demonizar” as redes sociais, mas  salienta que “o mal está nas pessoas”. “A humanidade tem essa face maligna. Então, o grande problema não é a gente se conectar por via virtual, mas o problema está em como as pessoas lidam com essa possibilidade de se conectar com muitas pessoas”, destaca.

Vargas aponta dois pontos que julga serem fundamentais para se entender como esse ambiente funciona. O primeiro é que muitas vezes as pessoas não conseguem dosar a atuação nas redes, não conseguem organizar o tempo e até a própria vida. O segundo ponto está relacionado ao fato de muitas vezes as pessoas não conseguirem entender que do outro lado da tela existe alguém com más intenções. “ Existem pessoas más que querem falar mal de você de alguma forma”, comenta.

O psiquiatra salienta ainda que muitos indivíduos vêem a internet como um lugar onde podem expressar a maldade sem serem penalizados. “Por não estarem conversando cara a cara, acreditam que não serão pegas”, diz. No caso de quem se expõe na internet, que não foi o de Jéssica – ela foi exposta sem vontade própria -, o psiquiatra orienta que esta pessoa precisa entender que há a possibilidade de ser constantemente bombardeada por comentários maldosos. “Para lidar com as redes sociais, a pessoa precisa desenvolver um nível de maturidade psicológica para enfrentar as diversas situações”, explica.

A psicóloga e psicoterapeuta Layne Silva, acrescenta que não é a primeira vez que um caso como o de Jéssica ocorre, e infelizmente não será o último. “Se não nos mobilizarmos enquanto sociedade pela regulamentação das redes, tragédias como esta podem continuar acontecendo”, alerta.

A internet é interpretada como uma terra sem lei, onde o suposto anonimato torna as pessoas “invencíveis”, segundo a especialista. “Tudo pode ser dito, todas as opiniões precisam ser manifestadas e tudo aquilo que sinto e penso pode sair sem filtros, sem crivo. Afinal, como poderão me acessar, aqui de dentro do meu quarto?”, reflete.

Tudo acontece muito rápido e o tempo todo, e com isso, não há controle sobre o que se posta ou se comenta nas redes. Por isso, é importante nos humanizarmos, segundo Layne. “ Eu preciso lembrar que quando comento, curto, opino, estou fazendo isso direcionado a alguém. E isso tem consequências, já que afetamos e somos afetados o tempo todo”, orienta.

Pais podem processar culpados pela morte

As redes sociais como o Facebook e Instagram, que fazem parte da empresa Meta, não têm responsabilidades por conteúdos publicados por terceiros. No entanto, a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 que regula o Marco civil da internet, em seu artigo 1º, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria.

O advogado Jean Moura, vice-presidente da Comissão de Direito Digital e Informática (CDDI) da OAB-Goiás, ressalta que, se de um lado existe a liberdade de expressão, que é um direito fundamental,  do outro, há a questão da privacidade individual. Essa privacidade, por sua vez, é geralmente ignorada, apenas quando há interesse público envolvido na questão, que se sobrepõe ao direito à intimidade. “Mas isso não é uma regra previsível, mas é algo que se avalia no caso concreto”, salienta.

Ao comentar o caso de Jéssica, o vice-presidente diz que houve crime de difamação previsto no código penal brasileiro. O crime viola direitos da personalidade das pessoas e apesar de haver um arcabouço judicial para avaliar esta questão, atualmente a atuação ainda não é “tão plena” quanto se gostaria que fosse, segundo o advogado.

Mesmo após a morte de Jéssica, os pais da jovem podem mover uma ação judicial contra aqueles que colaboraram com a disseminação das fake news envolvendo o nome dela, segundo Moura. ”Então, eles sofreram por toda essa situação e podem sim entrar com uma ação. Eles têm esse direito assegurado na lei”, afirma.

A família pode, inclusive, se envolver e colaborar com as investigações, por se tratar de um caso envolvendo a morte de alguém e que está sob investigação da polícia. De acordo com o advogado, quando cometido na internet, o crime de difamação tem  pena triplicada, chegando a até três anos de detenção.

Os últimos casos de crimes envolvendo a internet, têm levantado debates sobre a necessidade de se ter uma legislação mais severa com pessoas que cometem esse tipo de ação. Moura declara ao jornal O Hoje, que as leis precisam se adequar às novas tecnologias, tendo em vista duas problemáticas.

“Quando nós falamos de direito digital hoje a gente não pode intitular de forma plena, pois corremos o risco de destruir a tecnologia em si, quando deixamos de comentar algo e aí nesse caso começa a ficar muito regulamentada”, afirma. O segundo problema apontado pelo advogado é que após aprovadas, depois de certo tempo essas leis podem se tornar obsoletas na sociedade, já que esta, evolui a cada dia.

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