Uma breve história da Terra plana

Confira o artigo de opinião, desta quinta-feira (17/02), por Manoel L. Bezerra Rocha

Postado em: 17-02-2022 às 10h41
Por: Redação
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Confira o artigo de opinião, desta quinta-feira (17/02), por Manoel L. Bezerra Rocha

Há um adágio que vem desde a antiguidade segundo o qual a trajetória humana, ou melhor, a trajetória da vida, é cíclica. Alguns chamam de “eterno retorno”, ou seja, não importa o quanto caminhamos, o quanto viajamos, sempre retornaremos ao ponto de partida. Para os filósofos Aristóteles, Tomás de Aquino, Virgílio, a trajetória cíclica é positiva, pois, demonstra a evolução. Para Aristóteles, a história cíclica correspondia à perfeição do círculo e da esfera, dada a eternidade do mundo.

         Todavia, existem fenômenos do “retorno ao ponto de partida” que, inegavelmente, são manifestações inequívocas do retrocesso, uma gritante demonstração do fracasso do projeto humano. Talvez, também neste ponto, poder-se-ia considerar que tal fracasso seria positivo, levando-se em conta que enquanto uns sucumbem nessa trajetória, outros persistem e prosseguem numa trajetória evolutiva, como em uma seleção natural darwiniana.

         Possivelmente, nenhuma pessoa minimamente racional e com índices medianos de cognição, jamais imaginaria que em pleno século XXI pudesse existir pessoas que arrostassem a lógica, anatemizasse e conspirasse contra a ciência, negando o óbvio, ou seja, aquilo que salta diante dos olhos. Em plena época da tecnologia da informação, onde é possível acompanhar ao vivo a trajetória dos satélites e das estações espaciais que orbitam em volta da Terra, ainda há quem afirma que a Terra é plana. A Estação Espacial Internacional transmite, ininterruptamente, a sua trajetória em volta da Terra que está lá, para que todos possam vê-la, gratuitamente, o quão é ovalar, que possui uma trajetória em torno de si mesma que dura 24 horas, chamada de “rotação” e outra, em torno do Sol, chamada de “translação”, que dura 365 dias.  Não é incomum depararmos com pessoas com formação acadêmica de nível universitário e, ainda assim, não se envergonham em afirmar que a Terra é plana. Possivelmente, tratam-se de energúmenos incorrigíveis ou espertalhões que precisam disseminar o obscurantismo e o negacionismo científico como forma de manutenção de seus interesses.  

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         Porém, não se ofendam os obscurantistas e os negacionistas; os que são incautos e os que são malandros. Até mesmo o erudito Santo Agostinho não acreditava na esfericidade da Terra. Para ele, era inconcebível que os humanos pudessem viver como os Antípodas, ou seja, as pessoas que vivem de cabeças para baixo. Desde os pré-socráticos, surgiam teóricos que defendiam a tese de que a Terra é redonda. Durante toda a Idade Média, todos os estudiosos sabiam que a Terra é redonda – de Dante Aliguiere a Santo Tomás de Aquino. Entretanto, por interesses e disputas por poder, político ou religioso, criaram-se narrativas opostas e, tal como ocorre atualmente, cada um pregava aos seus séquitos aquilo que fosse contrário ao que o oponente difundia. Não que quem dizia que a Terra era plana ou em forma de Tabernáculo (versão bíblica), como sugerido por Santo Agostinho, acreditasse no que dizia, mas precisavam construir uma narrativa que se opusesse ao seu adversário e que distraísse a massa.

         O filósofo Umberto Eco relata que o pensamento laico oitocentista, irritado com a oposição de várias confissões religiosas à teoria evolucionista, atribui a todo o pensamento cristão a ideia de que a Terra era plana. Tratava-se de demonstrar que, assim como estavam enganadas sobre a esfericidade da terra, as igrejas também podiam estar equivocadas sobre a origem das espécies. Por sua vez, certamente Dante Aliguiere acreditava nos antípodas, pois conforme narra a sua obra “A Divina Comédia”, foi justamente do outro lado do globo que colocou sua montanha no Purgatório, na qual subiu sem cair de cabeça para baixo no vazio, aliás, no Paraíso.

         Depois de Cristóvão Colombo, a ideia da Terra redonda vai aos poucos deixando de ser combatida e passa a ser aceita, pois as terras do hemisfério sul, até então consideradas inacessíveis, começam a ser conhecidas e Américo Vespúcio já falava delas como se as conhecesse. Quando Aristóteles falava das vantagens de uma trajetória cíclica da humanidade, a ideia era a de que o ser humano caminha para a evolução, para o aperfeiçoamento do intelecto e do espírito. Nunca o filósofo grego conceberia a ideia de o homem percorrer milênios, desprezando o avanço científico, o conhecimento empírico, e desprezar tudo isso para retornar ao ponto de partida e, apesar da contemporaneidade temporal, situar-se, mentalmente, como se ainda vivesse em épocas prístinas de nosso passado primitivo.

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