‘Propostas que têm saído do Congresso beneficiam quem já tem muito’, diz Ana Carla Abrão
A economista e ex-secretária da Fazenda de Goiás, Ana Carla Abrão, em entrevista ao OHojenNews
A economista e ex-secretária da Fazenda de Goiás, Ana Carla Abrão, comenta que as grandes reformas estruturantes no país foram desmanteladas devido a pressão de setores com representação no Congresso Nacional e a fraca articulação política do Governo Federal. Em entrevista exclusiva ao programa Face do Poder do Hoje News a doutora em Economia pela Universidade de São Paulo aponta que o caminho seria a mediação por parte do Governo. “Quando a gente olha as reformas tributárias e administrativas é um processo de desmantelamento de propostas que poderiam ser muito boas. Existem formulações muito estudadas e profundamente debatidas que, não só não foram aproveitadas, mas foram desvirtuadas ao longo da proposta colocada pelo governo e na condução política do governo”, comenta.
Na sua avaliação, o que está errado nas propostas de reforma administrativa e tributária sugeridas pelo Governo Federal?
A gente começa pela própria condução das reformas pelo governo. É muito difícil não criticar a situação que estamos vivendo. Vale lembrar que o presidente foi eleito apoiado por uma pauta liberal que o ministro Paulo Guedes defendeu durante a campanha e nada disse aconteceu. Hoje as reformas mais criticadas e criticáveis mostram que nada daquela pauta reformista e privatizante que o ministro colocou junto com o presidente aconteceram. Quando a gente olha as reformas tributárias e administrativas é um processo de desmantelamento de propostas que poderiam ser muito boas. Existem formulações muito estudadas e profundamente debatidas que, não só não foram aproveitadas, mas foram desvirtuadas ao longo da proposta colocada pelo governo e na condução política do governo. As críticas vem pelos resultados que essas propostas têm gerado ao final do processo de tramitação e sua aprovação.
A PEC 32 que trata da reforma administrativa deve entrar em votação nos próximos dias. Por si só, ela não agradou nem aos servidores públicos, que alegam ter perdido direitos, e nem à iniciativa privada que alega que foi mantido o fosso entre o trabalhador privado e o trabalhador público. Na sua avaliação, há possibilidade de alteração em plenário?
Não. Ela já chegou ao Congresso com problemas estruturais, desde o uso de uma PEC para fazer uma reforma que ia de encontro com a estabilidade, que propunha cinco vínculos funcionais distintos, questionava a estabilidade para algumas carreiras. Ou seja, ela começou como um instrumento legislativo equivocado, com um nível de complexidade desnecessário e o que a gente viu foi a convergência para uma PEC com uma justificativa da inclusão do judiciário e do Ministério Público nas vedações dos privilégios de férias de 30 dias, aposentadoria por punição.
São esses os membros desses Poderes que usufruem desses privilégios, mas o relator optou por não incluí-los, que são as castas mais privilegiadas dos serviços públicos. Quando a gente olha a estrutura que ficou na PEC a partir do relatório não me dá esperança que esse relatório será corrigido em plenário.
Tem vários outros problemas, vários deles relacionados a desigualdades dentro e fora do serviço público. Cito essas vedações, que de eficiência não tem quase nada, já que o relator excluiu os servidores que têm esses privilégios e, além disso, ele manteve uma definição de atribuições típicas de estado que vai gerar uma situação muito complexa porque quase todas as carreiras vão se atrelar a essa definição. Além dos privilégios para as polícias que foi atrelado, muito em consequência dos lobbies da bancada da bala e vem alinhado ao que nós sabemos que tem sido o estado policial que o governo federal tem fomentado Brasil afora.
Como você vê o trabalho de Paulo Guedes, ele continua liberal?
Eu tenho dificuldades de fazer críticas às pessoas. O ministro se engajou em um governo que foi desmanchando e rasgando a fantasia que de liberal não tem nada, que de moderno não tem nada, na verdade é muito retrógrado, um governo autoritário que ameaça nossas instituições, que ameaça nossa democracia, que tem todas as pautas de costumes equivocadas.
E o ministro se juntou a esse governo, talvez com a ilusão de contribuir para o país na pauta econômica, mas o que a gente vê é que ele não conseguiu até porque, quem tem a caneta é o presidente da República.
Na verdade, metade dessa caneta está com o Congresso Nacional tendo em vista que o presidente delegou boa parte das diretrizes da gestão do orçamento para o Congresso. O que eu vejo é que o ministro se mantém com alguma ilusão ainda, mas sem dúvida ele está manchando a biografia dele insistindo em apoiar um governo sabidamente que entrará para a história como um dos piores governos que já tivemos no Brasil, se não o pior.
A pauta da reforma tributária impacta diretamente na vida de todos os brasileiros. Os governadores não abrem mão do ICMS se não tiver uma compensação, os prefeitos temem perder a participação do fundo constitucional. A senhora acha que é possível encontrar um meio termo onde todos sejam beneficiados? Como você acha que isso avança?
Essa é a dificuldade das grandes reformas, principalmente na situação que nós temos de um país muito capturado por interesses individuais. Isso vale para tributos, para subsídios dados ao longo do tempo, o crescimento e a complexidade da carga tributária. Isso vale para o administrativo onde os executivos foram cooptados por interesses corporativos específicos.
Eu sempre digo que é legítimo defender os interesses de cada categoria. O grande problema é o Congresso e o Governo que tem o papel de mediar esses conflitos. São conflitos distributivos que tem em qualquer situação. Talvez no Brasil estejam mais aguçados pela ausência de reformas e o excesso de sensibilidade a lobbys e a pressões que o nosso Congresso cedeu, mas sem dúvidas que resolver ou equilibrar esses conflitos é papel do legislador e do formulador. E isso nós não temos hoje.
As escolhas que estão sendo feitas, quer seja pelas propostas que o governo está colocando, quer seja por não ter habilidade política e o Congresso acaba decidindo sem olhar o todo, e acaba por gerar o que estamos vendo. Por isso é tão difícil avançar e quando avança, cede-se tanto e para tanta gente que ao ninguém perder, o país perde.
Porque afinal de contas a conta só aumenta por que ninguém cede seus benefícios e seus privilégios, as suas intenções em prol da coletividade que não tem voz no Congresso para gritar. O caso da privatização da Eletrobrás, por exemplo, cedeu a tantos interesses particulares, que o resultado final é uma conta de luz mais alta e mais cara para todo mundo. A reforma tributária, se avançar como está, certamente vai impactar de mais. As propostas que estão saindo do Congresso beneficiam aqueles que já tem muito.