A estrela sai de cena

Cauby Peixoto foi uma das maiores vozes da música brasileira e, com sua morte, o mundo perde um bocado de brilho e glamour

Postado em: 17-05-2016 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Cauby Peixoto foi uma das maiores vozes da música brasileira e, com sua morte, o mundo perde um bocado de brilho e glamour

JÚNIOR BUENO

‘Amaldiçoei o dia em que te conheci. Com muitos brilhos me vesti, depois me pintei, me pintei, me pintei, me pintei (…) Cantei, cantei, jamais cantei tão lindo assim, e os homens lá pedindo bis, bêbados e febris a se rasgar por mim”. A canção Bastidores, escrita por Chico Buarque, representou um momento importante na carreira de Cauby Peixoto, e a letra da música é quase literalmente uma metáfora para a história e a carreira do cantor. 

Depois de um sucesso fulgurante em seu começo de carreira, o cantor vivia em semiostracismo. Pouco aparecia na televisão, e seu estilo barroco de cantar era considerado o ápice da cafonice. Mas, em 1980, a própria MPB o resgatou. Muitos de nossos maiores compositores lhe enviaram canções inéditas, dentre elas Bastidores. Foram todas gravadas no álbum Cauby! Cauby!, que deu uma sobrevida à carreira dele. Cauby cantou e jamais cantou tão lindo assim, e eternizou a imagem que fica dele, agora que foi brilhar no céu dos astros maiores.

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Cauby nasceu em 10 de fevereiro de 1931, em Niterói – caçula de seis irmãos. Em uma família de músicos, passou a ter seus primeiros contatos, por meio de discos do irmão, que lhe mostrava canções de Sílvio Caldas e Orlando Silva. Foi assim que escutou a interpretação de Orlando Silva – que viria a se tornar ídolo de Cauby – e se apaixonou pela canção Rosa, de Pixinguinha e Otávio de Souza. O rádio já era veículo de massa, e todos gostavam de ouvi-lo. Além de tudo, sua mãe e suas irmãs adoravam cantar.

Em 1945, seguindo o exemplo dos irmãos mais velhos, Cauby tratou de ajudar nas finanças de casa, pois já tinha 15 anos. Passou então estudar à noite e a trabalhar durante o dia no comércio. Mesmo sabendo que a música era sua meta, Cauby ainda muito jovem nem sonhava com a reviravolta que estava para acontecer em sua vida. Trabalhou em uma sapataria e em uma perfumaria, até começar a participar de programas de calouros, no fim da década de 1940, como a Hora dos Comerciários, na Rádio Tupi. Gravou o primeiro disco pelo selo Carnaval, em 1951, com o samba Saia Branca, de Geraldo Medeiros, e a marcha Ai, que Carestia, de Victor Simon e Liz Monteiro. Foi um dos grandes nomes da chamada “era de ouro do rádio”. 

Em 1952, por intermédio de seu irmão Moacyr, Cauby conheceu Di Veras, famoso empresário, conhecido por suas grandes estratégias de marketing. Di Veras começou a trabalhar na estética de Cauby. Ele exigiu que Cauby se vestisse bem, pois, por ser de família humilde, não era acostumado, mas, perante os cantores da época, era uma obrigação ser elegante. As mudanças no visual de Cauby foram uma constante e, em 1955, lançou seu primeiro sucesso no Brasil, o Blue Gardênia, em uma versão que trouxe dos Estados Unidos em português. Na época, era um sucesso na voz de Nat King Cole, ídolo de Cauby. Di Veras trabalhou com Cauby até 1958, quando o cantor atingiu o 5º lugar nos álbuns mais tocado nos Estados Unidos.

Cauby foi convidado para uma excursão aos Estados Unidos e, durante a viagem no navio, ele cantou musicas religiosas. Já nos EUA, com nome artístico de Ron Coby, gravou alguns LPs com a orquestra de Paul Weston, cantando em inglês. Entre 1955 e 1958, ficou indo e voltando dos Estados Unidos. Em 1956, ele apareceu no filme Com Água na Boca, cantando seu grande sucesso, Conceição. Na época, foi citado nas revistas Time and Life como “O Elvis Presley brasileiro”. A Life o elegeu “o brasileiro mais bonito de todos os tempos”. 

Em 1957, Cauby foi o primeiro cantor brasileiro a gravar uma canção de rock em português, denominada Rock and Roll. O cantor foi acompanhado pelo grupo The Snakes, formado por Arlênio, Erasmo Carlos, Edson Trindade e José Roberto. Cauby apareceu no filme Minha Sogra é da Policia, de 1958. O grupo acompanhou Cauby na canção That’s Rock, composta por Carlos Imperial. Cauby ainda gravaria a canção Enrolando o Rock, da banda Betinho & Seu Conjunto. Após essa rápida passagem pelo gênero, o cantor não voltaria mais a gravar canções de rock, mas essa escolha não interferiu em sua carreira. 

Nesta época, a beleza de Cauby e seu visual, sempre impecável, conquistavam multidões e deixavam enlouquecidas as fãs. O assédio era constante, e não foram poucas as vezes em que ele foi atacado e teve suas roupas rasgadas por mulheres que queriam dele nem que fosse um pedaço de tecido. Em 1958, cantou com seu ídolo de infância, Nat King Cole, a quem ainda dedicaria um disco, em 2015. Durante toda a década de 1960, limitou-se a apresentações em boates e clubes. Pois de volta ao Brasil, comprou, em sociedade com os irmãos, a boate carioca Drink, passando a se dedicar mais a administração da casa e interrompendo, assim, suas apresentações.

A partir da década de 1970, apresentou-se com frequência em programas de televisão, no Rio de Janeiro, e pequenas temporadas em casas noturnas do Rio e de São Paulo. Aos poucos, os cantores da era de ouro do rádio, como ele, foram suplantados pelo minimalismo da bossa nova, e suas canções de amor, cantadas de forma rasgada e emocionada, foram taxadas de brega. Estava um pouco apagado da mídia quando, em 1980, o diretor da Som Livre, João Araújo, decidiu dar um gás em sua carreira.

Nascia o álbum Cauby! Cauby!, em que deu uma geral no repertório, com autores mais jovens ou sofisticados. A faixa-título era um autorretrato deslumbrante do cantor pintado por Caetano Veloso. Bastidores, de Chico Buarque, virou seu emblema pela vida afora: “Cantei, cantei, nem sei como eu cantava assim…”. A partir de então, a imprensa nunca mais se esqueceu do cantor. Seus discos e shows eram sempre comentados. Segundo o biógrafo Rodrigo Faour que, em 2001, escreveu Bastidores: 50 Anos da Voz e do Mito, Cauby foi influenciado pelo pianista americano Liberace. Ele   passou a ousar cada vez mais no figurino, com ternos extravagantes, e, vendo shows de Ney Matogrosso e Maria Bethânia, sentiu que era preciso se renovar também no palco. O resultado foi avassalador. 

Cauby passou a gravar um repertório melhor a e ser um showman de primeira categoria, capaz de romper fronteiras entre o brega e o chique. Muito se falou sobre sua sexualidade, mas, apesar dos rumores, Cauby nunca negou nem confirmou nada, continuou discretíssimo sobre sua vida pessoal. Tampouco levantou bandeiras, como a defesa do casamento gay. O fato é que Cauby Peixoto jamais enganou ninguém. Sua maneira de se posicionar era pelo look extravagante e pelo gestual afetado. Uma mensagem subliminar e subversiva captada até por crianças de colo. 

À sua maneira, do jeito que pôde, Cauby rompeu tabus e se posicionou politicamente. Só em 2015, já com mais de 80 anos de idade, finalmente deu o passo que ainda lhe faltava. Assumiu-se gay, com todas as letras, no documentário Cauby – Começaria Tudo Outra Vez, de Nelson Hoineff. Nem precisava, mas foi bom ouvir de sua própria boca.

O público o adorava, e os últimos 35 anos de sua carreira, iniciados com o disco de 1980, foram gloriosos. Cauby embarcou em infinitas turnês ao lado de Ângela Maria, regravou os repertórios de Roberto Carlos e Frank Sinatra, ganhou um musical em sua homenagem, lotou tornou-se uma lenda viva. Foi o último de uma geração de cantores e, com a sua morte, se vai também um estilo de cantar que já não existe mais, aquele de vozeirão aveludado, romântico incurável, ideal para se ouvir dançando num daqueles bailes dos anos dourados. O mais longevo de todos os cantores desse naipe teve 65 anos de carreira ininterruptos, sem que o metal da voz jamais lhe faltasse, sempre gravando e fazendo grandes shows, até o fim. Sex symbol para muitas mulheres, ícone para muitos gays, um deslumbre para muitos fashionistas. Mais do que homem ou mulher, normativo ou simpatizante, Cauby sempre foi uma estrela. 

Estrela que se apagou na noite de domingo (15), aos 85 anos, em São Paulo. Ele estava internado desde o dia 9 de maio no Hospital Sancta Maggiore, no Itaim Bibi, na zona sul de São Paulo. Segundo o fã clube do artista, ele morreu por volta da meia-noite de ontem. O hospital informou que o cantor teve um quadro de pneumonia. Cauby Peixoto foi mais do que um das maiores vozes brasileiras de todos os tempos. Também foi um ícone e um exemplo de como levar a própria vida sem se ater a convenções. Como naquela anedota, Cauby não virou purpurina: ele já era um brilhante raro ainda em vida.

 

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