Entre nesta festa!

Em cartaz na Capital, documentário São Paulo em Hi-Fi resgata histórias da noite gay paulistana nos anos 60, 70 e 80

Postado em: 29-09-2016 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Em cartaz na Capital, documentário São Paulo em Hi-Fi resgata histórias da noite gay paulistana nos anos 60, 70 e 80

Em determinado momento do terço final de São Paulo em Hi-Fi, documentário em cartaz no Cine Cultura, Kaká di Polly, uma das primeiras drag Queens do Brasil diz, de maneira séria – porém debochada – que, quando quer glamour, ela vai para a Grécia, já que este anda muito em falta em São Paulo – e no Brasil. Ela sabe do que está falando, já que viveu intensamente a noite gay da maior metrópole do País. 
Em plena ditadura militar, onde existir sendo gay representava um risco ainda maior que os dias de hoje, homens, mulheres, jovens, velhos, lésbicas, gays e travestis desafiavam a ordem vigente para, durante algumas horas por noite, se divertir em  boates e bares da cidade, dançar, paquerar e viver plenamente conforme seus corações mandavam. Lá fora, o mundo era – e ainda é – hostil. Mas, em alguns lugares, era divertido e colorido. O documentário São Paulo em Hi Fi, de Lufe Steffen, relembra as principais casas da noite gay paulistana de meados dos anos 60 até 1991. 
Com muitas imagens de arquivo de shows, o filme traz depoimentos de mais de 20 pessoas, testemunhas daquelas noites regadas a diversão, sensualidade e medo. Lufe entrevista frequentadores e donos de casas noturnas, jornalistas militantes, transformistas (o termo drag-queen ainda não havia chegado ao Brasil) que dividem com os espectadores suas lembranças e experiências pessoais. 
Algumas dessas pessoas, além de viver a noite como uma festa que nunca tinha fim, foram importantes na história da luta pelos direitos LGBT no País. O escritor João Silvério Trevisan e o jornalista Celso Curi foram percussores do jornalismo voltado para o público homossexual; o historiador norte-americano James Green esteve à frente do primeiro encontro dessas minorias para reivindicar seus direitos, em 1981, no Centro de São Paulo, o que pode ser tido como um embrião da Parada do Orgulho LGBT, que hoje em dia reúne alguns milhões de pessoas na Avenida Paulista. 
Realizada no dia 14 de junho de 1980, em frente ao Theatro Municipal, a manifestação reuniu, segundo James, cerca de 800 pessoas, que gritavam “Abaixo a repressão! Mais amor e mais tesão!”, paródia do grito popular “Abaixo a repressão! Mais arroz e mais feijão!” em um tipo de protesto até então inédito. Resgatar histórias como esta é necessário em tempos de conservadorismo político e social como os de hoje – segundo o diretor, Lufe Steffen. “Basta assistir ao filme e perceber que muitas coisas negativas que aconteciam nas décadas de 1960, 70 e 80 estão perigosamente voltando a ocorrer”, disse ele em entrevista ao Essência.
Um dos depoimentos mais emocionantes é o de Elisa Mascaro, que foi dona de três das mais importantes casas noturnas da época, o K-7, o Medieval e o Corintho. Sua relação com os dançarinos e as travestis que estrelavam os shows é lembrada com carinho. A transformista Miss Biá, da transexual Gretta Starr, e a  já citada Kaká di Polly fazem confidências emocionantes e divertidas. A nostalgia dá o clima, mas nunca chega a pesar e tornar o filme triste, mesmo quando o filme entra pelo dolorido caminho de como a epidemia da Aids matou muitos daqueles personagens centrais que fizeram a beleza da noite paulistana. 
Mesmo neste momento de dor, há uma palavra leve, uma visão bem humorada para a vida, como é típico na cultura gay. O grande mérito do filme é documentar esta época para o futuro. “Como vivemos no famoso ‘País sem memória’, torço para que iniciativas artísticas possam resistir a essa tendência de apagarmos nosso passado, como se ele não tivesse importância e relevância”, diz o diretor. Graças a ele, histórias divertidas, como a noite em que Wilza Carla resolveu chegar à boate montada em um elefante, podem ser recuperadas e registradas.
Luffe também dirigiu o documentário A Volta da Pauliceia Desvairada, que retrata a noite gay nos dias atuais. São outros tempos. Drogas sintéticas e música bate-cabelo dão a tônica nas novas casas noturnas. O desbunde e a inocência vistos em São Paulo em Hi-Fi já não existem mais, e o glamour, como bem disse Kaká di Polly, se acabou. Mas a vontade de ser feliz, de ser livre e de dançar como se não houvesse amanhã, isso não muda nunca.

Entrevista: LUFE STEFFEN

Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre a noite gay de São Paulo nos anos 60, 70 e 80?
A ideia surgiu enquanto eu fazia meu longa documental anterior, A Volta da Pauliceia Desvairada. Como esse filme mostrava a noite LGBT de São Paulo na atualidade, senti vontade e necessidade de completar a história, mostrando tudo o que aconteceu antes, ou seja, como foi o nascimento da noite gay de São Paulo e essa trajetória que abriu caminho para o momento atual. 

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Como foi o processo de realização do documentário?
O processo durou alguns meses. Primeiro houve a fase de pesquisa; depois, a coleta dos depoimentos dos entrevistados. Simultaneamente, ocorria a busca por materiais de arquivos ( fotos, vídeos, filmes ) e, finalmente, a montagem, que foi o momento mais extenso e difícil. 

Como jornalista, curador de mostras, escritor e cineasta, você sempre está envolvido com a temática da diversidade. Por que essa escolha?
Atualmente, não trabalho mais como jornalista. Como curador, na verdade, realizei apenas uma mostra de curtas-metragens brasileiros LGBT, englobando o período 2000-2015. Essa mostra foi derivada do livro O Cinema Que Ousa Dizer Seu Nome, que lancei no início de 2016 e que traz uma série de entrevistas com cineastas brasileiros das novas gerações, digamos assim, e que vêm trabalhando com o universo LGBT recorrentemente em seus filmes. E tanto o livro como a mostra são uma ramificação do meu trabalho de cineasta, já que todos os meus filmes têm relação direta com a questão gay, e portanto muito me interessa pesquisar mais sobre o assunto e dialogar com os outros filmes brasileiros que também fazem essa conexão.

Quais são os frutos de São Paulo em Hi-Fi? Como o filme contribuiu para tanto resgatar uma parte da história recente da cidade quanto tornar visíveis as pessoas e suas histórias?
Espero que o filme contribua para que essa jornada vivida pela comunidade gay no passado recente da cidade de São Paulo seja devidamente imortalizada. Como vivemos no famoso ‘País sem memória’, torço para que iniciativas artísticas possam resistir a essa tendência de ‘apagarmos’ nosso passado, como se ele não tivesse importância e relevância. É exatamente o contrário: quanto mais conhecemos nosso passado, mais ficamos preparados para lidar com o presente. Isso parece óbvio, mas pelo jeito muita gente não enxerga – ou não quer enxergar. No caso específico da visibilidade LGBT, acredito que o filme possa contribuir para fortalecer a luta por direitos e pelo fim da homofobia. Basta assistir ao filme e perceber que muitas coisas negativas que aconteciam nas décadas de 1960, 70 e 80 estão perigosamente voltando a ocorrer.

O filme se passa em parte nos anos da ditadura. Como era existir como gay, nesses anos, segundo os entrevistados do filme?
O filme termina em 1991, apenas seis anos depois do fim da ditadura militar. Era uma faca de dois gumes, havia momentos de repressão e certo clima de perigo, mas havia também liberdade e o direito ao desbunde. Obviamente, essa liberdade só acontecia porque os órgãos repressores não se sentiam ameaçados pelos gays. Nos momentos em que essa situação mudava, aí a repressão mostrava sua cara horrenda.

E como isso pode ser comparado com ser gay nos dias de hoje?
Antigamente, como eu falei, havia perigo mas as pessoas se arriscavam e conseguiam se expressar. Hoje, será que mudou tanto assim? Eu inverteria a frase: hoje, as pessoas conseguem se expressar, mas há perigo. De qualquer forma, essa resposta eu deixo para os espectadores do filme. Vejam a obra e tirem suas conclusões.

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