As Bahias e a Cozinha Mineira: discurso de igualdade disfarçado de música boa

Revelação da nova música brasileira, banda As Bahias e a Cozinha Mineira embala com bons arranjos debates sobre sexualidade e gênero

Postado em: 06-10-2016 às 06h00
Por: Redação
Imagem Ilustrando a Notícia: As Bahias e a Cozinha Mineira: discurso de igualdade disfarçado de música boa
Revelação da nova música brasileira, banda As Bahias e a Cozinha Mineira embala com bons arranjos debates sobre sexualidade e gênero

Júnior Bueno

Goiânia recebeu recentemente o show do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira. Elas nunca haviam se apresentado na cidade, mas estavam ansiosas para o show, que integrava o festival Vaca Amarela, e, daqui, iam para Brasília, abrir o show da Gal Costa no Festival Satélite. Desde que o disco de estreia da banda, Mulher, começou a chamar a atenção, elas não pararam mais. 

Para quem ainda não conhece, as bahias são Assucena Assucena (sim, o nome de flor em dobro) e Raquel Virgínia, duas vocalistas transexuais que se conheceram na faculdade, em 2011, e formaram uma banda fabulosamente performática, cuja sonoridade lembra muito a Tropicália e o Ney Matogrosso, mas com toques abluesados. E a cozinha mineira vem da primeira formação da banda, toda trabalhada no Clube da Esquina. Hoje, apenas um músico da formação é mineiro; antes, eram todos, daí vem a segunda parte do nome do grupo. Mas a influência setentista de Lô Borges, Beto Guedes, Milton Nascimento e quetais continua lá. 

Continua após a publicidade

Assucena falou ao Essência sobre como se juntaram: “Eu sou baiana, de Vitória da Conquista, e vim para São Paulo no mesmo ano em que a Raquel foi estudar em Salvador. Quando ela voltou, nós duas tínhamos o apelido de Bahia e começamos a nos juntar”. Mas, além das questões musicais, o que as unia era também o engajamento em causas sociais, como o feminismo, as demandas LGBT e o movimento negro. Daí que as músicas acabaram por ter o colorido desse lugar de fala das cantoras, que também compõem as músicas do grupo.

O que deu cola ao grupo foi a triste morte de Amy Winehouse, em 2011. “Ela era a melhor cantora de sua geração, foi uma pessoa muito incrível, com um talento enorme”, diz Assucena. A cantora inglesa inspirou as duas e o mineiro Rafael Acerbi a criar uma banda, a Preto por Preto (em referência ao disco Back to Black), para tocar nas festas da universidade. Mas ela conta que a banda encontrou resistência no próprio meio musical. “Muita gente coloca em cheque nossas composições, como se não pudéssemos ter composto algo com profundidade e sensibilidade”, diz Assussena.

A cantora acredita que o fato de o grupo ter explodido ao mesmo tempo em que outros artistas também estão injetando na música doses vitais de visibilidade sobre a diversidade sexual não é mero acaso. “Não é coincidência que o Mulher tenha saído no mesmo ano em que Elza lançou A Mulher do Fim do Mundo, que a Ava Rocha tenha vindo com o disco Ava Patrya Yndia Yracema, que Karina Buhr tenha feito Selvática, dentre outros”. Some-se a isso o surgimento de Liniker, Tássia Reis, Rico Dalasan, e temos um terreno propício para que se floresça, através da música, um diálogo com a sociedade sobre as diferenças, coisas que as mídias e as políticas se recusam a fazer.

Assucena acredita que esse cenário diverso se deve à efervescência dos movimentos sociais e aos pontos de conexão entre eles. “O movimento LGBT deve muito ao feminismo”, exemplifica. As Bahias, mesmo, fizeram uma turnê neste ano com a banda de Liniker, Os Caramelows e a cantora Tássia Reis. Desafiando limites de gênero, esses artistas compõem letras que abordam questões de gênero e sexualidade e a posição da mulher na sociedade, e ainda gritam contra o racismo. Mas se engana quem acha que vai dar o play em Mulher e ouvir um panfleto musicado.

O segredo está em que a militância não é maior do que a potência musical. “O que eu costumo frisar que música é essencialmente diversão e arte”, diz Assucena, que completa: “O que nós fazemos é dar conteúdo do que nós vivemos à arte, da qual nós vivemos, que é a música”. Não fosse a música ser tão boa, haveria ainda a importância do quão representativo é uma banda de destaque ter duas mulheres trans como estrelas. É um recado de que elas podem ocupar o lugar que quiser na sociedade, não apenas a margem. “Essa visibilidade é muito importante para as transexuais e travestis.

Tijolada

O álbum Mulher é uma tijolada no comformismo, desde a capa, provocadora em arte de Will Cega: traz um triângulo invertido negro sobre um fundo encarnado. A capa evoca símbolos femininos como um púbis que parece contrariar a ditadura da depilação total, arrodeado pelo sangue menstrual, prêmio que contempla as consorciadas todos os meses. O disco fala de mulheres, no plural, em músicas como Uma Canção Pra Você (Jaqueta Amarela), Josefa Maria e Reticências. Apologia às Virgens Mães, outra faixa, vai assim: “Menina de saia de gozo pré-extinto/ quantos tempos bordaram o calado bordel de teu instinto?”.

Navegando pelo brega, funk carioca, axé, soul e tropicalismo, elas (o feminino plural aqui serve para os homens da banda, um coletivo feminino por excelência) mergulham o ouvinte em muitas raízes tipicamente afro-brasileiras, aproximando opressor e oprimido por meio da música, rasgando convenções e celebrando, entre a ironia e o desbunde, uma mulher que ousa ser vista e ouvida.

Veja Também