‘Não era amor, era cilada’

Série estrelada por Penn Badgley, ‘You’ abre discussão sobre relacionamentos abusivos e exposição na internet

Postado em: 12-01-2019 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Série estrelada por Penn Badgley, ‘You’ abre discussão sobre relacionamentos abusivos e exposição na internet

GUILHERME MELO E EMILLY VIANA

Muitas produções atuais têm se debruçado nas consequências da exposição nas redes sociais.  A série You, disponível pela Netflix,  foca em alertar de forma quase debochada sobre os perigos da vida compartilhada. E mais: como a internet pode alimentar relacionamentos abusivos, baseados, sobretudo, no controle e na manipulação do outro – contas de instagram e facebook informam onde a vítima está e com quem, identificam amigos e locais nos quais ela frequenta, bem como gostos e sentimentos. Com tantos temas que captam a atenção do público jovem adulto, a série You ainda adiciona suspense, sarcamo e surpresas em seu elétrico enredo.

Um desafio de You, no entanto, é contornar o mundo das séries que está cercados de adaptações literárias que nunca estão à altura do material original. Na maioria das vezes, esse impasse se dá pelo tempo curto dos filmes e séries ou pela imprecisão dos fatos. A narrativa em primeira pessoa da maioria dos livros, que lotam as prateleiras de bestsellers, também atrapalha roteiristas preguiçosos. Crepúsculo, Cinquenta Tons de Cinza e até o ótimo Todo Dia, de David Levithan, agonizaram adaptações grotescas ao perderem aquilo que mais aproximava os leitores dos personagens: ouvir o que se passava pela cabeça deles.

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You, de Caroline Kepnes, é um livro narrado em primeira pessoa e ao ser adaptado para a televisão por Sera Gamble e Greg Berlanti (nome que tem um currículo impressionante de séries juvenis, que passa por Dawson’s Creek, Everwood, Supergirl e Riverdale), conseguiu um feito notável: não perder a atmosfera característica de uma história de impressões internalizadas. É ele, o protagonista perigoso e apaixonado, que transmite os eventos, parciais, afetados profusamente pelas próprias ideias e neuroses que ele ameniza como bem entende. Histórias em primeira pessoa se contam com interpretações subjetivas e esse é o maior trunfo da série. As engrenagens que construímos para nos convencermos de que nossas atrocidades são justificáveis podem ser tão assustadoras quanto estranhamente plausíveis.

Lançada pelo canal Lifetime em 2018, You passou despercebida e chegou a ser cancelada. A Netflix, que comprou os direitos de exibição, anunciou o interesse em continuar contando a história e somente agora é que a produção começou a ganhar notoriedade. Uma notoriedade bastante merecida, de fato. De alguma maneira, Berlanti e Gamble conseguiram fazer o simples (implantar a narração em off como forma de ampliar a compreensão dos personagens) funcionar perfeitamente a serviço da trama. A primeira temporada é esperta, intensa, inteligente e completamente imprevisível, tomada de tensão e descrições narrativas que surpreendem justamente por serem tão incomuns em adaptações literárias.

Tramas cativantes

A séria começa apresentando  Joe (Penn Badgley, de Gossip Girl), um gerente de livraria que tem uma forma peculiar de construir seus relacionamentos amorosos: ele escolhe alguém e investe todo seu tempo em se aproximar e cativar, usando de métodos agressivos e manipuladores para isso. Beck (Elizabeth Lail) entra na livraria de Joe por acaso e se torna, sem perceber, a vítima e o objeto de sua afeição. Poderia ser fácil para ele envolver e conquistar a moça, o problema é que Beck é uma mulher complexa, com amigos complexos e uma determinação pessoal forte demais para tornar-se simplesmente a peça de um jogo. Logo, a trama ganha camadas ao notarmos que mesmo sendo um sociopata, Joe também é enganado por ela, o que faz com que a tarefa de controlar a vida da amada seja quase impossível.

Em 10 episódios, You não nos dá tempo para bocejar. Joe tem um passado confuso, foi tutelado pelo dono da livraria, um homem violento e frio. Para traçar uma boa analogia com o presente, Joe é vizinho do pequeno Paco (Luca Padovan), um menino também violentado pelo padrasto bêbado, que joga toda sua confiança naquela nova relação de paternalismo indireto. Já Beck tem na amiga Peach (Shay Mitchell), uma interlocução igualmente interessante. Rica e bem relacionada, Peach usa a constante vida bagunçada de Beck como forma de mantê-la aprisionada pela própria sensação de inferioridade. E é claro, sua obsessão pela amiga vai se chocar com a de Joe pela mesma.

O mais fascinante está na maneira como todas essas dinâmicas se encontram. Os roteiros não se acovardam e quando colocam seus personagens em posições de perigo, honram essa posição mesmo que isso signifique sacrificar. Badgley constrói um Joe que às vezes parece um psicopata e outras vezes somente um homem apaixonado; enquanto Elizabeth faz de Beck uma heroína e uma hipócrita na mesma medida. Ela é a vítima, sem dúvida nenhuma, mas ela não se vitimiza.

Quando chegamos ao final, o senso de imprevisibilidade não se deixa seduzir pela natural torcida que construímos por um ou pelo outro. You termina num season finale poderoso, cheio de ótimas analogias e sínteses do que acontecera até ali, reforçando, sobretudo, o caráter realista da trama. Essa é uma série sem deux ex machinas que vem para salvar os oprimidos no último minuto. Ela é sádica em muitos momentos e no meio de toda essa paranoia, dá um jeito de ser romântica. É claro que seu cliffhanger está tomado de interesses comerciais, mas até para apostar no futuro é preciso coragem. E ela tem. No final das contas, ficamos tomados pelo sentimento de medo da aleatoriedade do destino, de sermos eleitos para entrarmos no lugar errado e na hora errada, ou de simplesmente estarmos investindo na aproximação com o grande inimigo. É sufocante, mas extremamente contemporâneo. Poderia ser eu, poderia ser você.

Alerta deperseguidor

Mesmo com o carisma de Joe, a série não deixa que o público se esqueça sobre o que está vendo. O próprio Penn Badgley afirmou que tudo que seu personagem fez é simplesmente errado, mas que, de certa forma, haverá momentos em que os telespectadores poderão se identificar com Joe – o que torna a história duas vezes mais interessante. O ator, no entanto, não quer que o protagonista seja romantizado por quem acompanha a série: recentemente, em sua conta pessoal no twitter, ele tem dedicado algum tempo para responder os usuários que comentaram sobre Joe ser o mocinho ou um cara legal. Enquanto a 2ª temporada de You ainda não tem data de estreia na Netflix, na literatura Joe já retornou em um segundo volume, Hidden Bodies (em tradução livre, Corpos Escondidos). O livro deve chegar no Brasil em breve. 

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