Voo 375, o quase 11 de setembro brasileiro

O avião sequestrado era um Boeing modelo 737-317. A bordo estavam 108 pessoas, incluindo a tripulação e o sequestrador.

Postado em: 30-11-2023 às 17h22
Por: Cecília Epifânio
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Voo 375, o quase 11 de setembro brasileiro | Foto: Reprodução

Os anos 1980 são conhecidos como “a década perdida”. O Brasil se afundava em uma crise econômica logo nos primeiros anos de redemocratização após a ditadura militar. A inflação e desemprego atingiam altos níveis, e os planos econômicos implementados pelo presidente da época, José Sarney, não surtiam efeito.

Todo esse contexto histórico é importante para entender um dos eventos mais importantes da aviação brasileira: o sequestro do voo 375, da já falecida companhia aérea VASP. No dia 29 de setembro de 1988, o avião saiu de Belo Horizonte às 10h50 com destino ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

Vale lembrar que, naquela época, o aeroporto de Confins, em BH, não tinha detector de metal e máquinas de raio x, e isso permitiu que o maranhense Raimundo Nonato entrasse com um revólver calibre 32 no avião. Após 20 minutos da decolagem da aeronave, Raimundo anunciou o sequestro. Ameaçando o piloto e copiloto, ele ordenou que o trajeto fosse desviado para Brasília. Ele tinha como objetivo atingir o Palácio do Planalto, para matar o presidente Sarney.

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Motivação

Nascido em Vitorino Freire, no interior do Maranhão, Raimundo Nonato Alves da Conceição fazia parte de uma família pobre, e viveu na pele as consequências da crise econômica que assolou o Brasil em 1988. Aos 28 anos, Nonato já havia trabalhado como tratorista em diversas empresas, mas, por conta da crise foi demitido e não conseguiu achar outro emprego.

Raimundo culpava o presidente Sarney (que já havia sido governador do Maranhão) pelo seu desemprego e miséria da família. Ele dizia que tinha “contas a acertar” com o presidente.

O sequestro

O avião sequestrado era um Boeing modelo 737-317. A bordo estavam 108 pessoas, incluindo a tripulação e o sequestrador.

Raimundo Nonato decidiu anunciar o sequestro enquanto as aeromoças oferecia o serviço de bordo. O comissário Ronaldo Dias até chegou a tentar impedir Nonato, mas acabou baleado. O tripulante Gilberto Renhe também levou um tiro e fraturou a perna. Na época, a porta da cabine de comando não era blindada, e isso permitiu que o sequestrador entrasse dando tiros na fechadura.

O comandante do voo era Fernando Murilo de Lima e Silva, com quem o sequestrador negociou suas condições. Entre os tiros e momentos em que Nonato saia da cabine, Murilo conseguiu digitar o código de sequestro (7500), no transponder do avião. Esse é um aparelho que indica a localização da aeronave e também permite enviar códigos de quatro dígitos para a cabine de controle de tráfego aéreo.

Murilo viajava ao lado de um amigo próximo, o copiloto Salvador Evangelista – a dupla gostava de gravar músicas juntos e reunir as famílias para jantar. Quando a torre de comando recebeu o código de emergência, tentou se comunicar com a dupla através do speaker da cabine. Quando Evangelista se abaixou para pegar o equipamento para responder ao chamado, acabou sendo baleado na nuca.

O corpo de Evangelista caiu, morto, no manche (alavanca utilizada para pilotar as aeronaves) do avião. Murilo avisou a torre de comando sobre a morte do companheiro, e seguiu para Brasília com o cadáver do amigo ao lado.

Sabendo do sequestro, a Força Aérea Brasileira (FAB) enviou um caça Dassault Mirage III para acompanhar o avião e interceptá-lo, se necessário. Caso o voo 375 se aproximasse muito do Palácio do Planalto, o avião civil precisaria ser abatido.

Truques aéreos

O céu da capital do país estava limpo naquele dia, com exceção de algumas nuvens que pairavam sob Brasília. Sem que Raimundo percebesse, o comandante posicionou o avião de modo que ficasse por cima das nuvens, e alegou que estava sem visibilidade. O sequestrador acreditou.

O combustível da aeronave estava próximo do fim, e o avião corria o risco de sofrer uma pane. Murilo sugeriu pousar em um dos aeroportos próximos: o de Anápolis ou Goiânia. Nonato aceitou o pouso em Goiânia, mas depois de um tempo ele ordenou que o avião fosse para São Paulo.

O comandante não tinha escolha, ele não tinha combustível para chegar em São Paulo, mas estava com uma arma apontada para sua cabeça. E, para completar, o motor esquerdo do avião tinha parado de funcionar. Foi aí que ele decidiu fazer uma manobra conhecida como tunneau barril, realizada apenas com aviões militares. A manobra consiste em girar o avião no eixo horizontal, ficando de cabeça para baixo. Essa foi a única vez em que uma manobra dessas aconteceu em um avião comercial civil.

A ideia de Murilo era desestabilizar Raimundo, fazendo com que ele soltasse a arma. Mesmo desequilibrado, o sequestrador não caiu no chão, e continuou com o revólver na mão. Então, Murilo colocou o avião em parafuso, que é basicamente colocar o avião em queda livre, com a frente do avião apontada para o chão. Nesse momento Nonato caiu no chão.

Assim que o comandante restabeleceu o controle do avião, ele se viu na frente da pista de pouso de Goiânia, e conseguiu aterrissar. Ele conta que o motor direito parou assim que eles tocaram o solo.

Negociação em solo

O sequestro não tinha acabado. Já no chão, Raimundo pediu que o avião fosse reabastecido e voltasse para Brasília. Murilo explicou que isso não seria possível, já que o motor da aeronave estava comprometida. Nonato, então, aceitou liberar os passageiros sob uma condição: a FAB teria que liberar um outro avião para que ele conseguisse fugir. Caso os reféns fossem realmente liberado, Murilo aceitou pilotar e auxiliar na fuga.

A FAB disponibilizou um avião Bandeirante para Nonato. Enquanto saía de uma aeronave para embarcar em outra, o sequestrador foi baleado na perna pela polícia. Foi levado para o hospital, e morreu alguns dias depois. O atestado de óbito alega morte por anemia falciforme, uma doença congênita que nada tinha a ver com os ferimentos. Essa causa é curiosa, e no mínimo questionável.

Já Murilo foi condecorado com a Ordem do Mérito Aeronáutico por seu desempenho e por ter evitado uma tragédia maior. Ele morreu em 2020, aos 76 anos, por insuficiência respiratória. Em entrevista, seu filho contou que a maior indignação do pai foi nunca ter recebido um agradecimento de José Sarney.

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