Entenda os motivos para considerar a família real britânica uma espécie de culto

Insinuação partiu do próprio príncipe Harry em seu novo livro de memórias

Postado em: 16-11-2023 às 16h54
Por: Cecília Epifânio
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Entenda os motivos para considerar a família real britânica uma espécie de culto | Foto: Getty Images

É bem provável que você saiba mais sobre a família real britânica do realmente faz sentido para uma pessoa que vive no Brasil, há mais de 5 mil quilômetros de distância, sem nenhum tipo de domínio institucional dos monarcas do Reino Unido.

Bem, talvez um domínio midiático, de quem se lembra da trágica morte da Lady Di, os casamentos televisionados dos príncipes William e Harry e o recente afastamento de Harry da realeza. E, é claro, de quem não perde um só episódio da série da Netflix, The Crown, que mistura ficção com fatos reais envolvendo os Windsor.

Seria a falecida Rainha Elizabeth II a líder de um culto que nos causa fascínio pela Família Real? Ou melhor dizendo, o Rei Charles III? Essa hipótese de que a monarquia possa funcionar como um culto veio de alguém que, até pouco tempo, estava lá dentro: o próprio príncipe Harry, em seu livro de memórias intitulado O que Sobra.

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Tal afirmação despertou o interesse e alerta para a escritora Rebacca Woodward, sobrevivente de um culto e escreveu sua análise para o site Electric Lit. A partir da afirmação de Harry, ela começou a traçar alguns paralelos entre sua experiência com os relatos do príncipe.

Rígidas regras e falta de individualidade

Bem antes de Harry e Meghan terem se separado da família real, Rebecca acabou notando essas semelhanças: “Quando assistia à cobertura televisiva dos Windsors com minha mãe, a rotina exaustiva e as regras rígidas da vida real começaram a me lembrar da vida na nossa religião: roupas modestas eram obrigatórias, personalidades eram sufocadas para sustentar uma imagem institucional e servir à instituição é a principal prioridade o tempo todo”.

Algumas outras similaridades apontadas por Rebecca são a aversão aos pelos faciais e a proibição de reclamar em público. Através das coberturas televisivas, ela notou que a princesa Diana estava irritada com as mesmas restrições que ela e sua mãe tinham que obedecer na época.

A diferente visão de quem está dentro do culto

No livro, Harry diz que “as pessoas de fora nos chamavam de culto”, mas com uma certa dificuldade em fazer tal afirmação. Rebecca disse que ela própria teve dificuldade em utilizar essa palavra, já que a definição de “culto” pode ser muito ampla e abrange a maioria dos grupos de pessoas que se alinham em torno de um sistema de crenças.

Mas, segundo a própria Rebecca, os cultos mais perigosos apresentam algumas características em comum. São elas: governados de maneira autoritária, acreditam que está sempre certa e é a única fonte de saber e da verdade. Os seguidores sempre são ensinados de que eles nunca são bons o bastante. Críticas e qualquer tipo de questionamento são extremamente proibidos.

A verdade absoluta mora no culto

Assim como em grande parte dos cultos religiosas, a existência da monarquia se sustenta na “vontade divina”. Vamos relembrar algumas aulas de história: reis e rainhas são supostamente escolhidos por Deus para terem o poder que têm – ou que tinham.

A doutrinação é um ponto em comum apontado por Rebecca: “Simplesmente nos referíamos às nossas crenças como ‘a verdade’, como se a nossa interpretação da Bíblia estivesse acima de qualquer questionamento. Conforme eu cresci, nem me referia ao nosso modo de vida como uma religião, uma vez que religiões podem ser falsas, e eu tinha sido ensinada que aquilo que eu acreditava era um fato incontestável, para o bem ou para o mal”.

Recompensa maior

Diversos cultos mantêm seus fiéis engajados, independente de qualquer sofrimento, com a promessa de existir um bem maior, de alguma redenção futura que valerá a pena por todos os seus sacrifícios. Muitas vezes “cultos da morte” envolvem sacrifícios coletivos, como ocorreu no caso do massacre em Jonestown. E o príncipe Harry não se poupou em fazer uma comparação nesse sentido.

Ele mencionou que seu avô, o duque de Edimburgo, costumava ser atormentado pela imprensa há muitos anos, o tempo todo. Porém, ao fim da vida, ele foi tratado como uma espécie de tesouro nacional. “É isso, então? Espere até que a gente morra que seremos promovidos?”, questiona. No livro, ele também cita que o seu próprio pai dizia que era necessário resistir para ser respeitado no futuro.

O adiamento da recompensa é uma ferramenta essencial para manter adultos até então independentes em um sistema de controle, e Rebecca menciona que ela também conviveu com essas promessas. Mas, no caso dela, seria necessário sacrificar os próprios desejos para ganhar um “passe livre” no Juízo Final. “Era melhor morrer com fé e ser ressuscitado no paraíso do que procurar a felicidade agora e perder essa esperança gloriosa.”

Dificuldade de se libertar

Cultos acreditam que não existe um motivo legítimo para abandonar o grupo e que seus ex-seguidores estão sempre errados ao decidir sair. Em seu livro, Harry menciona a incredulidade de seu irmão quando ele comunicou que estava se separando da família real, como se desconhecesse por completo a dor à qual o caçula estava sendo submetido.

Assim como sair de um culto, Harry e Meghan foram punidos pela exclusão social e familiar. Agora, no caso de Rebecca, era possível sair do culto de três maneiras: 

  1. Contra a sua vontade, ao ser banido;
  2. Por sua própria vontade e sendo, então, banido;
  3. Ou postergar a decisão pelo máximo de tempo possível e “desaparecer” gradualmente, na esperança de que ninguém do culto perceba.

Para ela, e aparentemente para Harry, a pandemia tornou a terceira opção inviável. Quando os pais pediram que ela participasse das reuniões por videochamada, Rebecca não tinha mais como esconder seu descontentamento com a fé — ou o fato de que estava morando com seu namorado não praticante. “De certa maneira, o lockdown foi a época perfeita para ser banida — não havia festas para eu ser desconvidada e ninguém estava saindo sem mim.” Coincidentemente, isso ocorreu enquanto ela acompanhava a mudança de Harry e Meghan para a Califórnia e via seus “amigos” deixando de segui-la no Instagram.

No início, tudo não passou de um grande alívio: ela não precisava fingir interesse nas escrituras quando seus pais ligassem (porque eles não estavam ligando) e pela primeira vez ela publicou uma foto do namorado nas redes sociais. “Foi apenas quando a vida voltou ao normal que eu senti que tinha perdido muito mais”, assinala ao mencionar que as pessoas do culto fingiam não vê-la quando passam por ela na rua. “Eu tinha sido treinada para tratar os desertores como se eles estivessem mortos, mas essa era a minha primeira vez como um fantasma”, compara.

Em entrevistas, o príncipe diz que gostaria de se reconciliar com a sua família, que seus problemas são com a imprensa e a “instituição” da família real, mas para Rebecca, baseada na própria experiência, é impossível separar a família do sistema que a governa. “A minha família e a religião dela são tão interligadas que se tornaram uma coisa só. Deixar uma significa deixar a outra.”

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