Nova regra sobre intervalo de almoço divide opiniões e acende alerta entre trabalhadores
Norma autoriza a redução do intervalo intrajornada de 1 hora para 30 minutos em jornadas acima de 6 horas, desde que haja acordo coletivo

“Eu não conheço muito bem a lei, não. Mas pelo pouco que fiquei sabendo, parece que é um acordo entre o patrão e o empregado. Só que, sinceramente, eu não aceitaria, não.” A declaração é de Marcos Antonio, 27 anos, auxiliar de serviços gerais, que admite não saber exatamente como funciona a nova regra trabalhista sobre o intervalo de almoço, mas desconfia que a mudança pode não ser benéfica para ele e seus colegas. Assim como Marcos Antonio, outros milhares de brasileiros e trabalhadores não conhecem e nem sabem sobre essa lei.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garante, desde 1943, o direito a um intervalo mínimo de uma hora para repouso ou alimentação em jornadas superiores a seis horas. Essa proteção histórica foi relativizada com a Reforma Trabalhista de 2017, que passou a permitir a redução desse intervalo para 30 minutos, desde que prevista em acordo ou convenção coletiva.
A flexibilização, no entanto, gerava dúvidas sobre sua aplicação. Foi apenas em abril de 2025 que uma nova regulamentação do Ministério do Trabalho e Emprego entrou em vigor, detalhando os critérios necessários para que essa redução seja válida e evitando interpretações distintas da lei por empresas e sindicatos.
Como funciona a Lei
Segundo o advogado trabalhista Luís Gustavo Nicoli, a nova norma não altera o conteúdo original da CLT, mas regulamenta a exceção já prevista. “Trata-se de uma regulamentação que especifica os critérios para a redução do intervalo intrajornada, permitindo que, mediante acordo coletivo, o intervalo de 1 hora possa ser reduzido para 30 minutos em jornadas superiores a 6 horas”, afirma.
Para que a redução seja válida, devem ser atendidas quatro exigências principais: a jornada deve ultrapassar seis horas; a empresa deve ter firmado acordo ou convenção coletiva com o sindicato da categoria; devem existir condições adequadas para o descanso, como refeitórios limpos e confortáveis; e a formalização da redução deve constar por escrito.
Um dos pontos mais relevantes destacados por especialistas é que a empresa não pode aplicar a mudança de forma unilateral. “É imprescindível que haja um acordo ou convenção coletiva com o sindicato representativo da categoria dos trabalhadores”, reforça Nicoli. Além disso, mesmo que o acordo exista, o trabalhador pode recusar individualmente a adesão ao novo modelo.
“A adesão deve ser voluntária e registrada formalmente no contrato de trabalho ou termo aditivo, garantindo a transparência e o consentimento mútuo”, acrescenta o advogado. A medida, portanto, se apresenta como uma possibilidade e não como imposição.
Apesar da promessa de maior flexibilidade, a norma acende alertas sobre os impactos na saúde física e mental dos trabalhadores. A pausa de uma hora não é apenas um tempo para refeição, mas um intervalo necessário para a recuperação do corpo e da mente.
Redução do intervalo: eficiência operacional ou risco à saúde?
“Menor tempo de descanso pode potencializar o cansaço, estresse e erros operacionais, além de prejudicar a saúde a longo prazo, especialmente em atividades que exigem esforço físico ou concentração contínua”, alerta o especialista. Pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que pausas regulares e adequadas durante a jornada são fundamentais para reduzir acidentes e melhorar a produtividade.
Setores com rotinas mais intensas, como comércio, indústria e serviços essenciais, tendem a ser os primeiros a aderir à nova regulamentação. Para alguns empregadores, a redução do intervalo representa a chance de encurtar a jornada diária sem alterar o salário, o que pode gerar ganhos de eficiência operacional.
Já para alguns trabalhadores, a possibilidade de sair 30 minutos mais cedo pode ser atrativa, especialmente para aqueles que enfrentam longos deslocamentos ou acumulam outras responsabilidades, como o cuidado com filhos. No entanto, o contexto precisa ser analisado caso a caso, e o acompanhamento dos sindicatos é considerado essencial para evitar abusos.
Sindicatos criticam e advertem riscos de precarização nas relações de trabalho
A posição dos sindicatos em relação à nova regra é majoritariamente crítica. Representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Força Sindical afirmam que, embora a regulamentação traga mais segurança jurídica, o risco é a precarização silenciosa das relações de trabalho.
“O que nos preocupa é o enfraquecimento do direito ao descanso digno. Muitas vezes, o trabalhador é pressionado a aceitar acordos por medo de perder o emprego”, declarou em nota a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC).
Por outro lado, entidades patronais como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) consideram a norma um avanço na modernização das relações trabalhistas e defendem que o respeito às regras legais evitará prejuízos aos trabalhadores.
A realidade, porém, nem sempre acompanha o ideal. Em muitas regiões, sindicatos são enfraquecidos, e trabalhadores sequer têm pleno conhecimento de seus direitos. Especialistas alertam que a ausência de fiscalização efetiva pode abrir brechas para que a redução do intervalo seja imposta de maneira irregular.
Em caso de descumprimento da norma, como a ausência de acordo coletivo ou de condições adequadas de descanso, o trabalhador pode denunciar à Superintendência Regional do Trabalho ou ingressar com ação na Justiça do Trabalho.
A regulamentação brasileira segue uma tendência observada em outros países que também flexibilizam pausas, mas com contrapartidas rigorosas. Na Alemanha, por exemplo, o intervalo de 30 minutos é permitido, mas deve ser dividido em duas pausas e jamais pode ser substituído por compensações financeiras.
No Japão, onde há preocupações crescentes com o karoshi (morte por excesso de trabalho), o governo impôs limites rígidos de horas extras e reforçou a fiscalização de pausas obrigatórias. Esses exemplos internacionais demonstram que, para funcionar sem prejuízo ao trabalhador, qualquer flexibilização precisa vir acompanhada de medidas efetivas de proteção.
Diante desse cenário, trabalhadores como Marcos Antonio se veem no dilema entre confiar na proposta de redução e preservar um direito conquistado há décadas. “A nova regulamentação não deve ser vista como uma imposição, mas como uma alternativa legal, desde que aplicada com responsabilidade. É fundamental que empresas e trabalhadores estejam cientes de seus direitos e deveres para garantir que a redução do intervalo intrajornada seja implementada de forma legal e ética”, conclui Luís Gustavo.
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