Governo pressiona base, ignora TCM, MPC e aprova calamidade
Apesar de alertas dos pareceres do Tribunal de Contas dos Municípios e do Ministério Público de Contas sobre ausência de déficit real, deputados cederam à pressão direta do prefeito Sandro Mabel e estenderam o decreto por mais 180 dias

Bruno Goulart
A Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) aprovou, na manhã desta quinta-feira (3), o Projeto de Decreto Legislativo nº 1656/25, que declara estado de calamidade pública na Secretaria Municipal da Fazenda de Goiânia e prorroga seus efeitos por mais 180 dias. A matéria, encaminhada pelo Paço Municipal e endossada pelo Palácio das Esmeraldas, foi aprovada por 30 votos a favor e apenas 7 contrários — decisão que atropelou pareceres contrários dos principais órgãos técnicos de fiscalização das contas públicas.
Tanto o Tribunal de Contas dos Municípios (TCM-GO) quanto o Ministério Público de Contas (MPC-GO) emitiram manifestações consistentes contra a medida. Nos documentos enviados à Alego, auditores e procuradores concluíram que não havia déficit real que justificasse a renovação do estado de calamidade, tampouco risco iminente ao equilíbrio fiscal. O TCM chegou a apontar que a prefeitura, na prática, “não apresenta indicadores fiscais que configurem situação excepcional de desequilíbrio orçamentário”.
A recomendação técnica, no entanto, foi ignorada pelos parlamentares da base aliada. A oposição classificou o episódio como uma tentativa de “dar um cheque em branco” ao prefeito Sandro Mabel, que, segundo relatos de deputados, ligou pessoalmente para pedir votos a favor da proposta. Além do assédio direto aos parlamentares, Mabel mobilizou secretários e lideranças políticas na véspera da votação.
Constrangimento
No plenário, o debate expôs o constrangimento de parte da Casa diante da decisão de contrariar pareceres técnicos de órgãos que, em teoria, deveriam orientar o Legislativo. “Se a questão é técnica, vamos respeitar o procurador, os conselheiros, o auditor, aqueles que acompanham as finanças e o que determina a lei”, disse o deputado Antônio Gomide (PT). “Não é possível que nós, enquanto deputados estaduais, não vamos respeitar a decisão do Tribunal”, completou.
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O TCM-GO avaliou que a situação fiscal da prefeitura não corresponde ao cenário de emergência descrito pelo Paço. De acordo com o deputado Clécio Alves (Republicanos), relatórios de execução orçamentária e fiscal mostram que a receita subiu 9%, enquanto a despesa aumentou 5% no período. Além disso, o comprometimento da folha de pagamento ficou em torno de 46% da receita corrente líquida — abaixo do limite de 54% fixado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). “Portanto, não tem folha estourando”, enfatizou o deputado Mauro Rubem (PT), outro opositor do decreto.
Em seu discurso, Rubem também questionou as cifras apresentadas por Sandro Mabel. “O prefeito fala que tem R$ 4,8 bilhões de dívidas, mas o que ele escreveu para o Tesouro Nacional é de R$ 1,8 bilhão. Onde arrumou R$ 3 bilhões em dívida? Está mentindo. Os números mostram que a prefeitura tem dinheiro”, afirmou.
Os dados oficiais corroboram a acusação. Na edição nº 6.757 do jornal O HOJE, publicada em 14 de maio, o colunista Lauro Veiga Filho revelou que a dívida líquida municipal despencou 72,66% no primeiro bimestre do ano, caindo de R$ 910 milhões em dezembro de 2024 para apenas R$ 248 milhões em fevereiro de 2025. Ao mesmo tempo, o caixa da prefeitura saltou de R$ 743 milhões para R$ 1,37 bilhão, alta de quase 85%. “As contas municipais não parecem indicar uma situação calamitosa”, escreveu Veiga Filho.
Ainda assim, deputados governistas defenderam que a prorrogação seria uma “medida necessária” para a administração municipal “organizar as finanças”. O líder do União Brasil, deputado Lincoln Tejota, afirmou que “todos se recordam qual era a discussão há um ano atrás: como tirar Goiânia do buraco?” e que Mabel estaria “tomando medidas” para resolver os problemas herdados. Já o deputado Gugu Nader (Avante) declarou: “Mabel fez o compromisso com a gente hoje que [a calamidade] é para ajudar a cidade de Goiânia. E ele tem direito de pedir”.
Decreto é garantia de “cheque em branco” para Mabel
Para a oposição, porém, o decreto representa a garantia de um “cheque em branco” que abre margem para contratações e despesas excepcionais, sem necessidade de seguir a LRF. “É uma vergonha o que essa Casa está promovendo no dia de hoje”, disparou Clécio Alves. O deputado denunciou supostos atos de improbidade: “Fraude contábil e fraude financeira. E esse prefeito do carimbo insiste em renovar uma calamidade que não existe”.
Alves também criticou o repasse de R$ 9 milhões ao Sesi — entidade ligada à Fieg, que Mabel presidiu — sem licitação e sem transparência. “Prefeito que mentiu dizendo que teria pediatra em cada unidade de saúde de Goiânia e não tem nenhum. Que pegou dinheiro e enfiou no Sesi para perseguir trabalhador”, acusou.
O deputado Antônio Gomide voltou a lembrar que se a decisão do Tribunal fosse favorável ao prefeito, seria exaltada como prova técnica. “Percebo que os deputados da base têm apenas um argumento: quando vai para o Tribunal de Contas, dizem que a questão é política. Quando vem pra cá, a questão é técnica. Se é técnica, vamos respeitar a técnica. Se não, para que serve o TCM?”, questionou.
Justificativas
Entre as justificativas apresentadas pela prefeitura está a necessidade de incorporar dívidas “não contabilizadas” que supostamente somam R$ 4,89 bilhões, o que incluiria precatórios da Comurg e débitos trabalhistas. O TCM, porém, foi claro ao afirmar que parte expressiva desses valores sequer consta nos balanços oficiais e que o cenário de “calamidade” seria, no mínimo, questionável.
A aprovação da matéria expõe um conflito institucional inédito: de um lado, os órgãos de controle, que recomendaram a rejeição; de outro, uma base governista disposta a ignorar pareceres técnicos e autorizar a flexibilização das regras fiscais. “Se não respeitarmos a decisão do Tribunal, de que vale um deputado ir representar essa casa na Corte?”, indagou Gomide, em tom de advertência.