Sem amparo legal, mulheres sofrem com violência obstétrica

Goiânia é uma das capitais com mais casos de cesarianas, para especialistas esse número pode estar associado com violência

Postado em: 22-07-2022 às 08h11
Por: Sabrina Vilela
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Goiânia é uma das capitais com mais casos de cesarianas, para especialistas esse número pode estar associado com violência | Foto: Sabrina Vilela

O parto é retratado pela maioria das pessoas como um momento de renascimento para a mulher. No entanto, o período gestacional pode ser algo traumatizante, ainda mais quando ocorre algum tipo de violência. O crime pode acontecer durante a gravidez, no parto, pós-parto ou até mesmo nos primeiros momentos do puerpério. Essa agressão pode ser cometida tanto por profissionais da saúde que atendem a gestante ou qualquer outra pessoa que conviva com ela durante essas fases.

Dados da pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, apontam que 45% das pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) sofreram algum tipo de violência. E 30% das atendidas na rede privada também passaram por situações parecidas. Há relatos de quem passou por essa experiência. Doula há quatro anos, Flor de Luz chegou à conclusão de que se conversar com qualquer mulher, irá ouvir casos de violência obstétrica. 

Estima-se que no Brasil, uma a cada quatro mulheres sofrem violência obstétrica. Goiânia é a capital com maior número de cesarianas em todo o país, com 71% dos procedimentos realizados, de acordo com levantamento do DataSUS em 2020. Para ela essa porcentagem de cesarianas mostra que os benefícios do parto natural, para a mãe e principalmente à saúde da criança, não estão sendo priorizados por profissionais, visto que não tem divulgação dos efeitos colaterais da cesariana para a mãe e para o bebê. 

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Luz aponta que os dados de violência são subnotificados pois não levam em consideração diversos tipos de violências sofridas pelas mulheres. “Os registros são duvidosos, pois não é considerado como violência obstétrica a peregrinação. Um exemplo é a família que não tem permissão de entrar na instituição para acompanhar a grávida. A gestante é obrigada sair pela cidade sentindo contrações em busca de assistência. Essa é a violência mais comum de todas, eu me pergunto se não seriam 4 a cada 4 mulheres”, destaca.

É mais comum do que se imagina

Flor de Luz lembra que ao entrar no centro cirúrgico pela primeira vez ficou horrorizada com as cenas. Ela relata que o médico chegou a retirar as luvas e gritar que não faria o parto porque a mulher pediu para não cortar a parte íntima dela. “Eu fui empurrada numa cadeira e ameaçada pela equipe que se não ficasse quieta seria retirada dali. Eles ainda fizeram a manobra de Kristeller [técnica realizada com o objetivo de acelerar o trabalho de parto, em que é realizada pressão externa sobre o útero] na parturiente”, lembra.

A doula também presenciou uma parturiente “cortada de fora a fora” em uma cesariana que gritava devido às fortes dores e sem ter recebido anestesia. “Foi um terror e em um hospital humanizado, referência em Goiânia”. Outro caso testemunhado pela profissional, foi de uma mãe que desenvolveu hemorragia grave em decorrência do excesso de força que foi obrigada a fazer para “puxarem o bebê”. 

A doula descreve que os casos de violência podem ser bem sutis. “Toques excessivos, ficar cutucando e abrindo a vagina durante o trabalho de parto, isso é muito comum.  Obrigar a parturiente a peregrinar de hospital em hospital em busca de atendimento. Empurrar a barriga, forçando o bebê a sair, cortar a vagina da mulher”, entre várias outras práticas fora da ética humanizada. 

Conforme elucida Flor de Luz, a violência obstétrica está presente em muitas salas de partos há cerca de 100 anos. “Hoje, precisamos unir a lógica da tecnologia que salva vidas com a cultura do parto respeitoso, porque parturientes não são meros objetos de trabalho, nascer é algo único e muito especial para ser passado a toque de caixa, batendo ponto, não é algo fast food”.

Trauma

Doula há quatro anos, Beatriz Barbosa também presenciou atos de violência contra mulheres durante o trabalho de parto que a deixou traumatizada. Um desses casos foi de uma adoslecente de 15 anos, que havia chegado na maternidade já com a bolsa rompida. Beatriz relata que precisou esperar horas pelo atendimento. Sem assistência, a mãe teve que procurar atendimento em outra maternidade depois de ter sido mandada embora. 

Chegando na outra maternidade a jovem sofreu mais violência verbal quando a médica se referiu ao corpo dela de forma pejorativa. “A médica disse que ela estava enorme, engordou demais, tão nova com filho e gorda desse jeito não vai voltar tão cedo o corpo. Nisso a gestante estava gritando horrores”. Os médicos a levaram direto para o centro cirúrgico para fazer uma cesárea e não permitiram a entrada de Beatriz para fazer o acompanhamento. 

No dia seguinte, a mãe foi transferida para um hospital de Goiânia a fim de fazer alguns exames e ficou das 7h até às 19h sem se alimentar, sem o filho, pós operada e sem os exames pós-operatórios.

Falta de legislação federal cria impunidade

Até o momento não existe uma lei federal que ampare casos de violência obstétrica ou nem mesmo alguma regulamentação que trate do tema. Contudo, por serem atos de violações podem fazer o uso da lei para se encaixar em crimes já existentes como,por exemplo, assédio sexual e lesão corporal. 

Os mecanismos para combater esse tipo de prática, segundo Flor de Luz, seria a família toda se preparar para a chegada do bebê. “Violência obstétrica é jurisprudência pela Corte Internacional de Justiça e é prevista pelo Ministério Público. As famílias precisam se preparar quando se dirigirem ao hospital, para gerarem provas, filmarem, fotografarem, fiscalizar que os procedimentos estão sendo anotados em prontuário”.

Em seguida, a profissional orienta buscar  alguma advogada especializada em violência obstétrica, para fazer denúncia na justiça. A vítima também tem a opção de ligar nos conselhos regionais de medicina, enfermagem ou na ouvidoria do hospital. No entanto, mesmo diante de tais medidas não têm sido o suficiente para exterminar esse tipo de prática violenta. 

Mas em Goiânia

Na Capital, a ex-vereadora Dra Cristina Lopes desenvolveu um projeto de lei – que falta apresentar na Câmara Federal – no qual permite às doulas acompanhar as gestantes em seus partos. A parlamentar explica que o intuito do projeto é oferecer às parturientes mais proteção e minimizar os vários tipos de violência obstétrica que podem ocorrer em um momento delicado e único. “Como vereadora em Goiânia, fui autora da Lei de Doulas que contribui para humanizar o parto e combater abusos e os diversos tipos de violência obstétrica”.

Enfermeira especializada na área de obstetrícia, Stephanie Marques explica que atuar no ramo vai além de estar inteirado com as atualizações científicas, o essencial deve ser transmitir as informações a parturiente e a família de forma clara, considerando suas fragilidades e toda a integralidade. Dessa forma tanto a paciente quanto o acompanhante estarão preparados para o momento do parto como protagonistas e exercendo sua autonomia que é de direito. 

De acordo com  a enfermeira, um instrumento que é muito válido – que pode ser construído durante o pré-natal – é o plano de parto que serve para manter a equipe que assiste ao parto, ciente do que a mulher deseja. “Nesse plano podem estar contidas informações sobre os cuidados com recém-nascido que podem proteger contra uma violência neonatal. Contato pele a pele, clampeamento tardio e amamentação precoce, são condutas que promovem benefícios à mãe e ao bebê e que devem ser respeitadas”. 

Ginecologista especialista em reprodução humana, professora e coordenadora adjunta do curso de medicina do Centro Universitário São Camilo, Fabia Vilarino explica que a denúncia pode ser feita no próprio hospital, visto que todos possuem um comitê de ética. Outra possibilidade é a vítima ir ao Conselho Regional de Medicina (CRM) do estado e dizer que quer fazer uma acusação contra o médico, uma situação, procedimento. 

Em seguida o conselho faz uma sindicância, solicita dados do paciente, conversa com o médico para avaliar se houve algum erro, violência ou se o direito da paciente foi infligido. Ela explica que a vítima pode fazer uma queixa em uma delegacia, por exemplo, a da mulher alegando que sofreu a violência.

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