A notícia que veio da quebrada

Rap goiano começa a chamar atenção nacional e passa a ter uma cena efervescente – mas não foi sempre assim

Postado em: 28-04-2016 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Rap goiano começa a chamar atenção nacional e passa a ter uma cena efervescente – mas não foi sempre assim

José Abrão

Testemunha Ocular, Boca Seca, Napalm, VMG, CL Aparecida, Lulu Monamour, Família Pobre Loko. Estas são alguns dos grupos que compõem a efervescente e crescente cena independente hip hop em Goiânia, com rappers, MCs, b-boys, DJs, grafiteiros e muito mais, cujo talento começa a se destacar nacionalmente. A cena em Goiânia está cada vez mais forte e profissional e começa a movimentar muita gente em eventos semanais,  com públicos que variam entre 500 e mil pessoas. Mas nem sempre foi assim. O movimento hip hop goiano começou há cerca de 30, quase 40   anos e, aos poucos foi ganhando espaço e conquistando abertura até lentamente chegar ao centro da cidade.

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Diferente da galera do rock que via bandas gringas na televisão, muita gente por aqui começou após ouvir por acaso um disco ou uma demo apresentada por um primo ou amigo mais antenado. Daí começou a rolar uma identificação natural com a temática periférica das músicas,  que ganhou mais força em um terreno inesperado da peri­feria goianiense: nas igrejas. “Meu primeiro envolvimento foi em 1986, na Fama. Eu já estudava com o Lagartixa, que era o melhor dançarino. Comecei a andar com o pessoal e eles me deram um disco do Whodini”, conta Antônio Carlos. Não conhece? Ele é o DJ Chubb, do grupo Kães de Rua, na ativa desde 1991.

Ele conta que conforme os grupos foram surgindo na periferia, já deram de testa com um grande problema: achar um lugar para fazer os eventos. “Como não conseguí­a­mos nada pra fazer as festas, acabamos indo pra Trindade. Alugamos um salão lá, no Clube Campestre”, conta ele. Mas para Chubb, o movimento se consolidou foi durante os anos 1990. Na época, eles conseguiram alugar várias vezes o Clube dos Sargentos com eventos que passaram a atrair gente que vinha de longe: “Dava muita gente. Trouxemos muita banda de fora”.

Mas Chubb relembra que o preconceito – que ainda é mui­to forte – era ainda mais forte na época. Por causa dis­so, nunca conseguiam firmar os eventos em um lugar só. Mal chegavam e já eram expulsos: “De lá passamos a fazer os Calçadões. A gente tocava, cantava e a galera dançava na rua. Fizemos primeiro no coreto da Praça Cívica. Depois na Anhanguera, perto da loja da Sheriff. De lá, fomos pro mercado aberto da Paranaíba em 2008. Até hoje lá tem um lugar com o piso alisado 5×5 pra galera dançar break”. Essa mudança constante acontecia não só por pressão de moradoras e da fiscalização. Assim como os caras do rock reclamam da falta de uma política pública de cultura, o pessoal do rap passou pelo mesmo proble­ma. “Entra um secretário, apoia nossa ideia e fica tudo bem. Entra outro secretário, evangélico, não gosta da gente, vai lá e fecha tudo”.

Ele reclama que sem apoio político, fica difícil blindar o movimento de perseguições: “Sem um vereador você não faz nada. Fomos para um ginásio abandonado no Pedro Ludovico. Tiraram a gente de lá. Fomos pro Vera Cruz, não deixaram”. Atualmente, Chubb organiza os encontros no chamado Castelinho, um ponto no Lago das Rosas todo primeiro domingo do mês. Ele critica o preconceito das pessoas: “Pessoal do rap não bebe, não briga, não fuma. Não pode entrar quem quer fazer auê. Quem faz break dance tem que ser saudável, vai lá pra suar”. Chubb não estranha a atual consolidação e popularidade do movimento hoje em dia: “Na época já era muita gente. Eletrorock, Kães de Rua… a gente movimentava mais de mil pessoas. Goiânia sempre representou, especialmente na dança. Teve muita gente daqui da nossa época que foi competir fora”.

Chub e outros membros da velha guarda foram homenageados pela Assembleia Legislativa de Goiás por seu impacto na cultura goiana, homenagem proposta pela deputada Adriana Accorsi. Um deles foi o DJ Fox, também conhecido como William dos Santos. “Depois de 40 anos a gente finalmente entrou na casa do povo para ter a nos­sa cultura reconhecida”, disse Fox. Ele conheceu o rap pouco antes de sair do orfanato ao ouvir uma fita de um amigo de lá. “Quando saí, comecei como DJ de equipe de som. Montei para tocar em aniversário, bem humilde. Comecei a fazer música, só que eu tocava o que eu queria e não o que o público queria (risos). Em 1992, me mudei para o Bairro Goyá, que tinha fama de ser muito violento na época, e me apaixonei pelo rap nacional”.

Fox conta que a música mudou a vida dele e a do bair­ro: “Me identificava com o que as letras falavam. Sobre a polícia batendo nos moleques, sobre os problemas com álcool, sobre os meninos de rua, da vida sofrida do pessoal. O rap virou, a periferia começou a desabafar, ele veio para ser do bem, para fazer uma crítica social”. Ele conta que haviam festas nos bairros que “competiam” entre si conforme cada grupo de som arrastava seus fãs para as festas, algumas mais conhecidas do que outras, como Rock’n Rua, o Africano’s Bar, a Quadra do Clóvis, a Quadra do Nivaldo, o Recreativo e a Supermix e Eletromusic, todas na quebrada.

“Existia um racha (risos), uma rivalidade sadia entre os bairros. Mas aí depois todo mundo se encontrava nos eventos que tinha em Campinas e ficava se provocando, tirava onda. Chegava o Ruizão e falava ‘pô, final de semana passado arrastei mil pessoas’”, conta Fox. A competição começou a levar a uma profissionalização dos grupos, sempre em busca de uma música diferente e de uma quali­dade melhor no equipamento: “Era importante ter algo exclusivo e um equipamento de ponta. Cheguei a gastar R$ 500 em uma viagem a São Paulo para apresentar um som novo para as pessoas”, conta Fox. Ele ressalta que, na época, ser DJ era todo baseado em sua coleção de vinil e que era muito difícil no tempo em que “DJ Fulano apresenta” realmente significava alguma coisa.

“Eu cheguei a ter dois mil discos de vinil em quatro caixas. Contratava dois monstros só pra carregar as caixas pra cima e pra baixo”, brinca Fox. Em 1995, ele passou a rimar também: “Chegou um rapaz, o Pio do Rap, lá de Brasília e queria cantar na nossa equipe. Ele cantou, achei massa e eu queria desabafar, xingar o governo. O grupo chamava Consciente Rap. Canto até hoje, devo ter umas 200 músicas”. Agora, com 42 anos, ele conta que o som automotivo e a facilidade da aparelhagem de som de hoje quebrou o movimento sound system que teve que se reorganizar. “Isso quebrou muita gente. Muito DJ foi mexer com outra coisa”. 

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