Um sonho Real

Em resgate às brincadeiras de criança, o espetáculo ‘Rudá – Um Sonho Real’ estreia hoje em Goiânia

Postado em: 27-05-2016 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Em resgate às brincadeiras de criança, o espetáculo ‘Rudá – Um Sonho Real’ estreia hoje em Goiânia

Os barulhos da infância ficam na memória e marcam o tempo em que não havia perseguição do relógio. O navio centenário, que trouxe o avô de Gustavo Lobo dos mares de Portugal, ainda tocava sua buzina durante a infância do neto. E o menino sonhava. Queria levar a âncora daquele navio como lembrança para casa. Mas era comum, também, sonhar que ela estava dentro de seu quarto, como se estivesse tão próximo que pudesse sentir – não se sabe, ao certo, o que ela estaria fazendo lá. Mas o menino cresceu e quis tornar aquele – e outros tantos sonhos malucos de mente de criança – reais. Crescido, Gustavo vira circense e cria o espetáculo Rudá – Um Sonho Real.

O porto, de que se lembra o artista, é o famoso Porto de Santos, São Paulo. Cidade em que nasceu Gustavo Lobo. De SP ao Canadá, Gustavo seguiu investindo na carreira. Depois de dez anos na companhia canadense Cirque Du Soleil, o brasileiro cria a Companhia Rudá, fundada na cidade natal de seu idealizador. A primeira montagem da equipe, Rudá – Um Sonho Real, estreia hoje (26) em Goiânia. O modelo da companhia é inspirado nos anos de experiência de Gustavo que, além do Cirque Du Soleil, passou pelo Cirque Eloize, também canadense, e pelo Teatro Sunil, da Suíça. A companhia brasileira tem a produção artística baseada na arte do circo contemporâneo, ou Novo Cirque. O estilo faz a música, a dança e o teatro dialogarem com uma alta performance atlética e artística.

Este é o segundo ano de turnê da companhia. Outros dois integrantes do elenco também fizeram parte do Cirque Du Soleil. Gustavo é, além de idealizador, diretor e artista do espetáculo. O grupo programa mais de 22 apresentações para a turnê deste ano. 

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A produção conta com oito personagens que viajam no tempo e resgatam elementos imaginativos e brincantes da infância.

Outros sons inspiram partes do espetáculo. “O sino representava nossas mães, com gritos de que o almoço estava pronto”, conta o diretor sobre um dos símbolos de sua infância. Esses símbolos são transportados para o ambiente do espetáculo de uma forma que não fica restrita ao palco, mas interage com o público. Por meio de números acrobáticos, danças e imagens marcantes, as personagens relatam suas memórias e resgatam o prazer que sentiam em uma simples brincadeira – uma delas, o jogo de taco, como Gustavo gosta de citar.

Se você brincava no quintal de casa, no quarto, na rua, sozinha, com um tanto de menino e menina, ou mesmo imaginando uma renca de crianças, não se sentirá desamparado pelo cenário. O diretor promete: “O espetáculo transporta o bairro de sua infância para dentro do teatro”. Mesmo que a referência seja a sua própria vivência e das demais personagens, o ambiente retratado em cada cena tenta ser universal e trazer elementos que perpassam as diversas infâncias. “A gente tenta retratar essa saudade que todos nós temos em comum, a infância”, garante Gustavo.

Os números aéreos são explorados sem censura. É possível identificar os objetos da infância em cada performance. O teatro acrobático e laboratório de pesquisas teatral, bastante utilizados no espetáculo, bebem na fonte de Daniele Finzi Pasca. Considerado o grande mestre do circense, o francês é diretor, autor, coreógrafo e palhaço. Além disso, o mestre também é co-fundador da companhia Finzi Pasca. 

Outra francesa não só inspira como faz parte da equipe do espetáculo. Kyra Jean Green cresceu na Flórida, Estados Unidos, e é assistente de direção de Rudá – Um Sonho Real. Kyra estudou na mais famosa escolas de artes do mundo, The Julliard School. A assistente é dançarina e fez as coreografias interpretadas no espetáculo.

O espetáculo

Em tempos de tablets, fones de ouvido maiores que a cabeça, controles de videogame e smartphones nas mãos de crianças com menos de dez anos, resgatar as brincadeiras simples parece ironia. Pião, pipa, esconde-esconde, pega-pega, pé na bola e taco são algumas das práticas infantis resgatadas pelo enredo. Contrastando com o mundo virtual no qual vivem as crianças de hoje, os espectadores poderão ver de perto e quase que apalpar as brincadeiras de sujar as mãos, os pés e suar até dizer chega. 

Além da possibilidade de retomar os tempos da infância da geração atual de adultos, o enredo possibilita a reflexão sobre a crescente lógica mercadológica da tecnologia, que contaminou, inclusive, as crianças. O contraste social e cultural também é explicitado a partir da possibilidade de se enxergar a diferença nos tipo de brincadeira – mesmo que em uma mesma época. Com a exploração dos recursos do Novo Cirque, Gustavo Lobo traz um conceito novo de espetáculo para o Brasil capaz de levantar reflexões sobre a existência humana.

“Éramos tão ingênuos que não nos dávamos contas da mudança entre o dia e a noite”, reflete o diretor sobre o tempo da infância. A fuga do relógio é a principal critica levantada pelo roteiro. Em época de correria para trabalhar, estudar, comer e, inclusive, tempo reduzido e desprivilegiado de descanso, o relógio torna-se o maior inimigo da sociedade. A sensibilidade de Gustavo, no entanto, foi capaz de perceber que, nos tempos de menino, essa fuga não existia. O máximo que se sabia de relógio, naquela época, era sobre aqueles que os adultos costumavam desenhar nos nossos braços, de caneta azul. 

Na época em que não havia perseguição dos ponteiros, Gustavo só sabia que o tempo tinha passado quando a mãe gritava para comer. Mas até o ato de se alimentar virava semente para os sonhos. “Para enganar a fome, olhávamos para o alto e, de lá, das árvores que quase encostavam-se ao céu, subíamos para colher ingá, goiaba, cuca, enquanto o jantar não ficava pronto”, relata. Além das alegrias, o diretor consegue, também, expressar as perturbações da infância, mas sem tirar os encantos.

Como quase todas as crianças daquele tempo, Gustavo se lembra do tio da rua de traz que lhe trazia balas e doces. O nome dele era Elder, e os doces lhes serviam de impulso para continuar brincando. Afinal o açúcar lhes dava mais energia e alegria, segundo relata o artista. “Quando o senhor Elder não passava pela rua, sonhávamos em pedir ao prefeito da cidade que abrisse uma bomboniere em cada bairro e distribuísse gratuitamente”, vislumbrava o menino. Juntaram-se sonhos, memórias, encantos e desencantos; dança e números aéreos foram transformados em teatro ou maneiras pelas quais o menino Gustavo conseguiu tornar Rudá um sonho real. 

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