Os “fantasmas” do Césio

Dramas psicológicos 30 anos após o acidente radioativo

Postado em: 02-10-2017 às 06h00
Por: Márcio Souza
Imagem Ilustrando a Notícia: Os “fantasmas” do Césio
Dramas psicológicos 30 anos após o acidente radioativo

Alzenar Abreu*

A psicóloga Suzana Helou, que acompanha os radioacidentados
há 30 anos, afirma que mesmo três décadas após o maior acidente radiológico do
mundo, ocorrido em Goiânia em 1987, ainda pairam entre as vítimas sequelas do
sofrimento vivido nos dias de terror frente ao fantasma da radiação. A
entrevista exclusiva ao O Hoje, a seguir, mostra também a vida dos acidentados
que superaram as dificuldades e conseguiram seguir em frente, retirando da
experiência, forças para lidar com o inesperado.

Suzana lançou neste fim de semana, na Vila Cultural Cora
Coralina, o livro “Os Bastidores do Césio – 137”. A publicação conta a história
vivida pelos profissionais da saúde que atenderam os pacientes no auge da crise
com o Césio e traz uma pesquisa de como hoje, após trinta anos, pacientes e população
convivem com as nuances psicológicas e emocionais que envolveram o drama que
comoveu o mundo há 30 anos.

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Como você começou a
fazer parte do time de psicólogos que participou do atendimento emergencial e
pós-acidente com o Césio 137?

Recebi um convite da Legião Brasileira de Assistência para
me voluntariar e acompanhar os pacientes na terceira semana após o acidente com
o Césio.

Como os pacientes foram
atendidos naquele momento de emergência?

Os radioacidentados estavam distribuídos em diferentes
lugares conforme o grau de comprometimento deles.  Aqueles que estavam adoecidos por causa da
síndrome aguda da radiação foram internados no HGG, onde tiveram psicólogos para
atendê-los. Os que não estavam apresentando sintomas, mas estavam contaminados
e tinham que passar por tratamento de descontaminaçãoforam para uma unidade da Fundação
Estadual para Bem-Estar no Menor (Febem – que hoje se chama Fundação Casa). E os que já haviam sido
descontaminados, mas estavam desabrigados,foram para o Albergue Bom Samaritano,
onde hoje está localizada a Feira da Estação, na região Central de Goiânia. Também
foi criado um núcleo de apoio psicossocial na Rua 57 para atender os moradores
vizinhos de foco e população geral na medida que havia demanda.

Como era o clima de tensão durante as
consultas, no momento mais crítico do acidente com o Césio 137?

Aquele
momento era de muita desorganização. E esse era uma parecer geral de todos os
psicólogos envolvidos. As estruturas familiares haviam se esfacelado. As
famílias se desagregaram. Enquanto uma parte da família estava no hospital,
outra estavana  Febem, outra no Hospital
Marcílio Dias, da Marinha, no Rio de Janeiro, onde os casos eram bem mais
graves. Então, assim, esfacelou-se a família e as relações interpessoais se
desmantelaram.

Amigos e
vizinhos desapareceram. Havia muito preconceito, por medo de contaminação. Houve
perda de objetos pessoais, não só móveis e eletrodomésticos, mas também de
álbuns de casamento, álbuns de infância. Perderam todas as referências pessoais,
todo o histórico familiar. Tudo isso contribuiu muito para um sentimento dedespessoalização.  De perda de identidade.  As casas deles foram demolidas e tudo que
estava dentro virou lixo radiativo.

Todas essas pessoas chegavam a uma
situação de despessoalização, como você citou. Você entrevistou pessoas que
tiveram só perdas materiais ou perdas 
familiares também?

As famíliasafetadas
foram aquelas “presenteadas” com uma pedrinha do Césio 137. Eram famílias de pessoas
conhecidas. “Quando Devair, o dono do ferrovelho, comprou o equipamento
radiológico, junto a elehavia o recipiente com o Césio 137. Daí ele descobriu,
por acaso, à noite, que do orifício daquele recipiente, emanava uma luz azul
linda, encantadora. Ele dizia que seu grande erro foi ter se apaixonado pela
“luz azul do césio”. Em razão disso, ele começou a mostrar para as outras pessoas,dizendo“olha,
leve essa pedrinha para você.” Dessa forma,com partículas do césio sendo
presenteadas, foram criados, então, os focos de radiação. Cada pessoa que
levada para a casa gerava um foco de radiação.

Foi então que
a mulher do Devair, a Maria Gabriela, pegou a peça e levou para Vigilância Sanitária,
porque ela percebeu que a presença do produto resplandecente estava adoecendo
as pessoas. Quando entregou a peça para o representante da vigilância à época,
ela disse: “É isso que está matando meu povo!”Porque no ferrovelho todos
adoeceram. Todos estavam de cama. Passando mal. Vomitando.  Então veio uma parente do interior para
cuidar dos doentes e adoeceu também. Tudo por causa da radiação recebida pelo
Césio. Foi desse ferro-velho, o ponto de partida das vítimas mais graves,
inclusive das que morreram, como a menina Leide nas Neves e a tia dela, Maria
Gabriela.

Como eram os
sentimentos envolvidos. As lembranças na abordagem aos pacientes?

Havia muito medo. A demanda de sentimentos era muito grande.
Era constante. O trabalho da psicologia era todo o tempo focal, ou seja,
direcionado às questões emocionais decorrentes do acontecimento. O trabalho se
concentrava no HGG, na Febem e no Albergue Bom Samaritano, onde hoje fica o
Shopping Estação. No albergue estavam as vítimas desabrigadas.

Como administravam o
medo de secontaminar ao atender as vítimas?

No meu caso, eu não tinha essa dúvida porque o grupo com
quem eu trabalhei não estava contaminado. Bem diferente no caso dos psicólogos
que estavam trabalhando no HGG, orientados pelos técnicos de radiologia a não se
aproximassem mais do que um metro de distância dos pacientes. E o psicólogo
tinha que estar todo paramentado, com máscara, macacão especial, bota, gorro e
luvas, para não se contaminar. Mas aí ficava a situação: Como o psicólogo vai
fazer a abordagem por trás desses paramentos todos?

O paciente só via os olhos do psicólogo. Era assustador para
as vítimas. Não havia contato.  Não se podia
chegar perto. Mas eles pediam. E os psicólogos relatam que aceitavam todos os
desafios impostos pelos pacientes.  Eles
pediam para ver os rostos dos profissionais que,então, abriam mão da proteção.Eles
pediam: “sente-se aqui, perto de mim.” E o psicólogo sentava.  Na verdade as vítimas estavam isoladas, não podiam
receber a família. Eles precisavam de um contato mais próximo.  Então, essa intimidade não foi possível
evitar.

Os psicólogos chegaram à conclusão de que estavam ali para
fazer o acompanhamento das vítimas, independente do risco que corriam. Eles
relataram que não podiam fazer o trabalho naquelas condições, sem poderem ver
os rostos dos pacientes. Então venciam o medo, quando optavam pelo trabalho, ao
invés de se aterem aos riscos que corriam.

Qual seu maior
desafio atual?

Administrar esses medos.  Porque se passaram 30 anos e não aconteceu
nada. Nada de diferente, quando comparamos com a população em geral.  Esse momento é de celebrar e desmistificar as
consequências do acidente com o Césio-137.  Fiz uma pesquisa, no final do ano passado,na qual
apliquei um questionário aos radioacidentados dos grupos 1 e 2  e também um questionário na população em geral.
Uma das questões para os radioacidentados é:“você ainda se considera uma de
vítima?” 80% deles dizem que sim.  E
pergunto para população em geral: “vocês acham que os radioacidentados ainda
permanecem vítimas?” 90% disseram que sim. 
E a principal justificativa dos radioacidentadospara se verem como vítimas  é porque na concepção deles, ainda são
discriminados.  Acreditam que ainda são
vistos como irradiados,que são temidos e evitados pelas pessoas. Mas, quando pergunto
sobre isso para população ela me diz o contrário, que as vítimas não oferecem
risco. E quando abordo sobre os sentimentos em relação aos radioacidentados,
83% diz sentir amor e compaixão. O medoé
relatado por menos de 0,5%.  

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