Política no palco da literatura

Flip 2016 é marcada por celebrações à poesia e críticas a governo interino

Postado em: 03-07-2016 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Flip 2016 é marcada por celebrações à poesia e críticas a governo interino

Amanda Damasceno, de PARATY*/Especial para O Hoje

A 14ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) teve início na noite da última quarta-feira (29), e logo mostrou a que veio. Sendo muitas vezes chamada de “Flip das Mulheres”, a edição deste ano teve início com provocações políticas vindas em diferentes momentos. A sessão de abertura, Em Tecnicolor, contou com a participação do poeta Armando Freitas Filho e do cineasta e diretor de fotografia Walter Carvalho. A mediação do encontro ficou a cargo do também poeta Eucanaã Ferraz. Durante a conversa que falava de poesia, cinema e da homenageada, Ana Cristina César, a política não se fez ausente nas falas dos convidados.

Antes ainda dos convidados entrarem, o curador da Flip 2016, Paulo Werneck, fez menção à atual crise pela qual o País passa, prestando uma homenagem “às editoras e ao jornalismo”. Werneck destacou que, wm 2016, a festa enfrentou algumas dificuldades. “Neste ano, está sendo muito difícil; é uma realidade que todo mundo está vivendo”, afirmou. Sem citar o nome, fez menção ainda à Cosac Naify quando afirmou: “As editoras estão fechando e tivemos grandes perdas. Autores lançaram livros que serão apresentados aqui por editoras que já fecharam as portas”. 

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Por fim, o curador reforçou a importância de se garantir a continuidade “da cultura, da poesia e da obra de Ana C. que pulsa mais viva do que nunca” antes de chamar ao palco os convidados da noite.

Conexão

Armando Freitas Filho e Walter Carvalho têm uma ligação muito clara: o diretor produziu um documentário sobre o poeta. A outra ligação vem de outra maneira: o cinema e a poesia conversam entre si. De acordo com Freitas Filho, “todos os gêneros têm uma mesma origem, um modo de dizer que seja novo ou inesperado”. Já Carvalho complementou dizendo que, da primeira vez em que leu um livro do poeta, se deparou com uma poesia que o fez questionar se estava diante de um poema ou de uma imagem.

Questionado sobre sua obra, Freitas Filho respondeu: “A poesia, pelo menos a minha, é o gênero que toca todas as coisas, inclusive as monstruosas, que pode acabar num Temer, por exemplo”, disse, sendo muito aplaudido pelo público presente na Tenda dos Autores. 

Em seguida, ao falar do filme Manter a Linha da Cordilheira sem o Desmaio da Planície, os dois convidados falaram da experiência de produção da obra. Carvalho ressaltou que esse não é um filme sobre Armando, mas sim um filme com Armando. “Inventei um Armando junto a mim”, explicou. Já o poeta declarou que essa criação mostra o que o cineasta sente por ele. “Não só ele olhou para mim, como eu também não tirei os olhos dele. Ficamos apaixonados”, brincou o poeta.

Já ao final da sessão, os dois falaram sobre a poeta Ana C., homenageada deste ano na festa. Freitas contou da amizade que tinha com ela desde que a conheceu, quando era uma “menina de 21 anos”. “O que me impressionou foi a maneira intrigante com a que ela te provocava”, afirmou, destacando que os dois brigavam muito durante os anos de amizade, porque tudo para ela era um problema. 

Walter lembrou do projeto que fez sobre a poeta. Feito há quase 20 anos, o filme de oito minutos foi sugerido pelo pai de Ana C. quando ele levou vários objetos para o cineasta. “Ele trouxe tudo o que tinha dela, e colocamos tudo em cima de uma mesa. Em duas tardes com a câmera, fomos tentando entender a vida de Ana C. pelos objetos”, contou.

Política na Flip

Após os debates, foi apresentado o filme de Walter Carvalho que fala sobre Armando e, para encerrar a noite, no lugar do tradicional show de abertura o que se viu foi um sarau, comandado pela atriz, apresentadora e poeta Roberta Estrela D’Alva. Ligada ao movimento hip-hop, Roberta trouxe convidados que declamaram versos em meio a, mais uma vez, comentários políticos.

O sarau começou com o já conhecido “primeiramente, fora Temer”, que arrancou aplausos da plateia. Ao subir ao palco, o poeta Chacal – ícone da poesia marginal dos anos 70 –, foi além. “Fora Temer, fora Globo, fora Cunha. Tem mais gente para cair, mas, por enquanto, ficamos com esses três”, e repetiu: “Fora Temer, fora Globo, fora Cunha”. Outro momento bastante aplaudido foi quando a poeta Mel Duarte recitou seu poema contra a cultura do estupro.

Já no segundo dia de festa (30), a primeira mesa de debates, A Teus Pés, seguiu a tônica do dia anterior. Com as poetas Annita Costa Malufe, Laura Liuzzi e Marília Garcia, ‘herdeiras’ de Ana Cristina César, a discussão foi, mais uma vez sobre poesia e, novamente, passou por questões políticas. 

Questionadas sobre de que maneira a obra de Ana C. as influenciava, as escritoras destacaram diferentes aspectos. De acordo com Annita, “podemos pensar na obra dela como uma nova proposta de paradigmas. O que ela fez, só ela fez no Brasil e trouxe muitos elementos novos”. Marília concordou e acrescentou que “assim como se diz de Ezra Pound, pode-se dizer que Ana C. é ‘contemporânea a seus netos’”.

Já Laura, antes de responder, fez uma ‘quebra de protocolo’. Leu um poema sem dizer de quem era e, ao final, explicou: “Esse poema, bem ruim, é do presidente interino, Michel Temer. E é possível ver que ele tem uma legitimidade como poeta bem coerente com a legitimidade de presidente” – e arrancou uma série de aplausos da plateia. Por fim, voltando ao tema, afirmou que Ana C. abriu a porta, mas cada uma segue um caminho diferente.

Feminino na poesia

Continuando o debate, as três discutiram a influência de ser mulher na hora de escrever poesia, tanto na obra de Ana C. quanto eu seus próprios trabalhos. Anitta afirmou que ser mulher claramente impacta, já que qualquer construção é feita a partir de quem se é e das experiências que se tem, durante a vida, mas que o incômodo vem de estereótipos que dizem o que é ou não tema de mulher.

O ponto também foi destacado por Laura, que disse ter horror, desde cedo, a esses estereótipos. “O feminismo está nisso, em não ter que corresponder às predefinições”.  Para ela, isso de se falar em “escrita feminina” é apenas uma forma de escolher temas dos quais as mulheres poderiam ou não falar em suas poesias. E Marília apontou que “Ana C. desconstrói exatamente isso. Ela pega gêneros ditos femininos, como diários e cartas, e os subverte”.

*A repórter viajou a convite do Itaú Cultural 

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